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“Gestão e Negócios Sustentáveis”, de autoria de Superdotado Álaze Gabriel.
Disponível
em http://www.gestaoenegociossustentaveis.blogspot.com.br
Autoria:
UNESCO/ONU.
INTRODUÇÃO
A Revolução Francesa introduziu no
panorama histórico-cultural do Ocidente a tensão dinâmica de um “dualismo
trágico” entre o individualismo radical dos “direitos humanos” e sua
institucionalização na figura burguesa do “cidadão”. E esse contexto incide de
modo marcante sobre a questão da Universidade e de seu lugar na organização da
cultura.
Wilhelm von Humboldt foi um pensador que
vivenciou, do modo mais típico, a angústia dessa tensão di-nâmica como um
verdadeiro dilema existencial. Seu con-1. Para um aprofundamento, ver R.
Haerdter, Der Mensch und der Staat, prefácio ao livro de W. v. Humboldt, Ideen
zu einem Versuch die Grenzen derWirksamkeit des Staats zu bestimmen, Stuttgart,
1978.
Aos 24 anos de idade, em 1792, Wilhelm
demitiu-se do cargo de funcionário público do governo prussiano. Com isso,
visou mais que apenas o afastamento de uma função que lhe parecia bloquear a
criatividade. Colocava, diante desi, a possibilidade de realizar um verdadeiro
“ajuste de contas” filosófico com o próprio Estado moderno, cuja emergência se
desenhava nos horizontes do Iluminismo europeu. E foi isso que ele buscou
expressar numa significativa obra, cujo longo e desajeitado título aponta
nitidamente a natureza do problema: Idéias para uma tentativa de se determinar
os limites da efetividade do Estado.
Toda a empatia de Wilhelm von Humboldt
para com a Revolução Francesa ficava obscurecida pelo temor de que o ideário
iluminista incorporasse ao otimismo incondicional de sua crença no progresso
uma crença na onipotência da instituição estatal. Em outras palavras: ele quer
resgatar do humanismo idealista uma noção de liberdade que não se deixe
sujeitar à perversão do terror totalitário. A liberdade que Humboldt prega para
a pessoa não é a liberdade do arbítrio individualista feito um fim em si mesmo.
Ela é a liberdade como condição de possibilidade para a formação da autonomia
ética da pessoa. Com isso, fica recolocada a questão ética no centro da questão
política. E Humboldt consegue expor o nervo do “dualismo trágico”: o risco de que
o ideário iluminista se perverta na requisição de uma nova forma de sacrifício
ritual da pessoa em novas formas de servidão.
Para Humboldt, as leis do Estado não
são, em si mesmas, expressão da virtude. As prescrições do Estado moderno
introduzem imposições ou hábitos de que as pessoas “esperem sempre mais
ensinamento alheio, direção alheia,ajuda alheia do que elas próprias concebam
caminhos alternativos”. Sob o seu Império, o Estado passa a se igualar “a uma
multidão de ferramentas animadas e inanimadas, e não uma multidão de forças
ativas e sensíveis”. Configura-se, assim, o sacrifício da autonomia ética da
pessoa diante do aparato anônimo de controle. Emerge a existência massificada,
a serviço da operação eficiente de um dispositivo de controle e diferenciação
funcional. Nesse processo, a burocratização das estruturas modernas de poder é,
para Humboldt, a contrapartida organizacional da mecanização, impondo seu ritmo
às atividades econômicas e políticas.
Para Wilhelm von Humboldt, a eliminação
da formação ética da pessoa na modernidade decorreria da perversão da liberdade
pela homogeneização e uniformização das situações. Para ele, a liberdade de
ação esvazia-se de conteúdo existencial, quando se deixa sujeitar a uma
pré-moldagem institucional, que elimina a diversidade de situações com as quais
as pessoas são confrontadas. Assim, a reflexão humboldtiana remete à questão da
educação científico-tecnológica e ao lugar da Universidade na organização da
cultura.
E essa remessa, no contexto
político-universitário alemão do início do século XIX, implica a consideração
de quatro tendências predominantes. Eram elas:
1. A Universidade tradicional,
corporativista, conservadora, dissociada de pesquisas empírico-sistemáticas,
centrada na transmissão dogmática do conhecimento por meio de um sistema de
ensino estático, uma espécie de “missa do intelecto”, que se recusa a incorporar
um compromisso com o pragmatismo utilitarista.
2. O projeto pedagógico iluminista
radical, que vê na atividade científica a fonte geradora de “conhecimentos
úteis”, sistematizados em enciclopédias, que codificam o saber científico-empírico
tecnologicamente instrumentalizável. A Universidade transmuta-se em escola
científico-profissionalizante especializada de nível superior, expressão maior
de um sistema estatal integrado de ensino.
3. O projeto pedagógico iluminista reformista
que compartilha da ênfase utilitarista do Iluminismo radical quanto ao
dever-ser da prática científica, mas não vê nas universidades apenas peças de
museu a se-rem superadas pelo novo sistema estatal integrado de ensino. O que
se propõe é a busca de um “compromisso pragmático”, que adapte aos novos imperativos
uma instituição universitária reformada.
4. O projeto universitário humboldtiano
exemplificado na fundação da Universidade de Berlim, que deve ficar claro, não
teve objetivo reformista. O que se visou foi a criação de algo novo, que se
diferencias-se tanto da universidade tradicional, como do projeto
utilitarista-iluminista.
Os planos para a criação da nova
Universidade permaneceram nas gavetas da burocracia estatal prussiana até a derrota
da Prússia para os exércitos napoleônicos (1806-1807). Todos os territórios a
oeste do Elba caíram sob domínio de Napoleão, e, com eles, diversas
universidades como as de Duisburg, Paderborn, Erlangen, Erfurt, Münster, Göttingen
e Halle, a principal universidade reformista-iluminista. Nesse novo quadro, em
16 de agosto de 1809,
Frederico Guilherme II assina o decreto
de fundação da nova Universidade de Berlim. Wilhelm von Humboldt tem papel
fundamental nesta fundação. Ele vai moldar a idéia-diretriz de um novo projeto
universitário, em conformidade com o humanismo idealista de Schiller, Schelling
e Fichte, a “formação ética da pessoa através de uma ciência que se compreende
a si mesma como filosofia”. Esta concepção, enraizada no idealismo filosófico
alemão, busca pensar o contexto global da vida e do mundo “como um produtivo
pensar-se a si mesma da verdade em sua generalidade, que se liberta das
autoridades e fins imediatos do saber, para se constituir numa auto-reflexão
que reconstrói a totalidade do mundo como consciência de princípios”. Esse
ideal vincula a atividade científica a uma correspondência ética com a vida, de
modo que, nas palavras de Fichte, “o filósofo possa ser o eticamente virtuoso”.
Para a perspectiva humboldtiana a
autonomia universitária é o espaço institucional de uma “solidão e liberdade”,
que é também pressuposto para que se atinja aquele ponto “onde pensamento e
realidade se encontram e voluntariamente se transformam”. São uma “solidão e
liberdade” dirigidas polemicamente contra um claro opositor, que não é mais a
“missa do intelecto” ministrada nas universidades tradicionais, mas sim a escola
científico-profissionalizante especializada, de nível superior, em que a
universidade iluminista escolarizada tendia a se constituir.
O projeto humboldtiano se afirma como
espaço institucional de uma formação ética da pessoa por uma ciência que se
compreende a si mesma como filosofia, e se afirma polemicamente contra a
“cegueira auto-reflexiva” de uma Universidade que se escolariza segundo
critérios de utilidade e especialização, fixados pela sociedade civil burguesa
ou pela burocracia estatal. A palavra ética não é entendida na perspectiva
humboldtiana como a mera expressão dogmática de um código de ação moralizante.
Ela é sim a expressão da busca de uma correspondência normativa da vida, a
permanente autoconstrução da pessoa, cuja autonomia espiritual requer a “solidão
e liberdade” como metáforas da “destutelarização do intelecto”, condição de
possibilidade para toda ação apta a ter no mundo, segundo a ex-pressão de I.
Kant, “o material do dever”. Agir eticamente fazendo do mundo o material do
dever é para Humboldt o fim último da formação universitária estruturada para “metamorfosear
tanto mundo quanto possível na própria pessoa [...] pela vinculação de nosso eu
com o mundo para as mais gerais, provocantes e livres relações”.
Nesse ponto, interrompo o encadeamento
desta exposição para uma breve polêmica comigo mesmo. Que sentido pode ter
minha insistência em afirmar a “contemporaneidade” desse velho autor prussiano,
cujo projeto universitário, na Alemanha de hoje, subsiste apenas de modo fragmentado
e impotente? Lá, a reverência para com o projeto universitário humboldtiano
tornou-se um ritual oco e unânime, não sendo pouco significativo que a extinta
Alemanha comunista tenha mantido, durante toda sua existência, o nome “Wilhelm
von Humboldt Universität” para designar a universidade de Berlim Oriental.
Passemos em revista alguns dos
pressupostos básicos dessa imagem-diretriz ideal, por século e meio hegemônica em
meio aos povos germânicos:
1. A liberdade de ensino e aprendizagem
de professores e estudantes. Humboldt vincula, em seu “plano organizacional”,
essa liberdade a uma diferenciação essencial: entre as escolas superiores e a
Universidade. Nas escolas, os docentes lá estão para os estudantes. Na
Universidade, ambos estão conjunta-mente confrontados com a ciência pura. A
liberdade de ambos é um privilégio diante de todas exigências pragmáticas da
aprendizagem e da formação da pessoa. Se hoje fôssemos aplicar, de modo
estrito, os exigentes critérios humboldtianos, a imensa maioria das universidades
não seria mais que centros escolares de formação profissional cientifizada. Um
reconhecimento tão drástico não deve ofuscar, no entanto, o fato de que, mesmo
nas universidades alemãs do século XIX, um enquadramento pleno nos critérios humboltianos
talvez só fosse observado nas faculdades de filosofia.
2. A unidade de ensino e pesquisa. No
tempo de Humboldt, essa exigência era de fato uma realidade. Basta
considerarmos que obras decisivas de Fichte, Hegel e Schelling foram
inicialmente produzidas como material de Vorlesungen (aulas expositivas sob a
forma de leituras em auditório). Hoje isto se revela uma impossibilidade,
quando nos diferentes campos de conhecimento os problemas da pesquisa passam a
ter como pré-condição de compreensão um curso acadêmico completo. A fórmula humboldtiana
se esvazia de sentido e se reduz à questão de se os pesquisadores, além de
pesquisar, também não seriam os melhores professores, por terem melhores condições
de “traduzir” pedagogicamente os resultados das mais novas investigações. Uma
questão que de modo algum se pode responder com um simples sim.
3. A unidade da ciência na filosofia.
Este pressuposto humboldtiano já foi destruído faz tempo pelo progresso das
ciências realizado na especialização. A pretensão de sintetizar o conjunto do
saber científico e de reduzi-lo a um denominador comum filosófico não é mais
considerada, hoje, um legítimo objetivo de pesquisa da ciência moderna.
Salvaguardar a unidade da ciência, tarefa central no projeto humboldtiano,
parece transformar-se em quixotesca batalha contra moinhos de vento, agora que
a filosofia perdeu sua posição-chave no interior dos saberes universitários.
4. A formação ética da pessoa pelo valor
pedagógico da ciência. Todo o anteriormente exposto solapa, decisivamente, as
bases do pensamento nuclear da concepção de Universidade humboldtiana: Humboldt
estava convicto de que uma praxe científica em “solidão e liberdade” assegurava
uma conformação normativa da vida, por ele designada “formação ética da pessoa
na ciência”. A ciência que hoje ensinamos em nossas universidades não parece
corresponder a isso. Atribuir-lhe uma “potência etizante” da vida seria mais
que uma enganosa ilusão, seria uma verdadeira empáfia.
Mas se hoje a formação científica não
pode ser imediatamente identificável com uma “etização do caráter da pessoa”,
tampouco devemos desistir de toda e qualquer tentativa de dar ao vínculo entre
ciência e vida aquela efetividade que Humboldt queria associar à “idéia moral”.
Hoje, confrontados com uma cientifização “infinita” da praxis, podemos, pelo
menos, não abrir mão da tentativa de unir os efeitos da cientifização com as
virtudes da cientificidade: modéstia, prudência, objetividade, crítica e
autocrítica. Isso permanece parte vinculante da pedagogia da razão “razoável”.
E justamente “razoável” por não
pretender fazer da objetivização do racional a única razão de ser de toda realidade.
5. Culturalismo. Idéia fundamental para
a concepção humboldtiana de universidade é que a vida espiritual da ciência
repousa em si mesma, e que nessa autonomia como cultura deve ser promovida pelo
Estado. Contra o dirigismo protecionista do Iluminismo prussiano, Humboldt
afirma a irredutível liberdade da pesquisa e da formação da pessoa na ciência.
Mas essa concepção de uma ciência autônoma perante os poderes estatais,
políticos e econômicos não parece conseguir se sustentar. A contemporânea
“tecnociência” é um decisivo meio político de poder, um essencial meio
econômico de produção.
Ela de tal maneira se imbrica nas
estruturas políticas e econômicas que se torna ilusório pretender isolá-la como
um fato circunscrito a um supostamente autônomo domínio da cultura.
6. Nacionalismo. Dimensão, hoje
silenciada, da concepção universitária de Humboldt é a idéia nacional. A
universidade alemã dos séculos 19 e 20 não é compreensível sem ser referida ao
fundamento político do nacionalismo. Ela partilhou essa idéia até seu amargo
fim no nacional-socialismo. Mas o próprio “nacionalismo universitário”
humboldtiano deve ser visto no contexto de um “projeto” mais do que de uma realidade
dada. Humboldt não pretende com a fundação da Universidade de Berlim “o melhor
para a Prússia”, e sim “o melhor para a Ale-manha”. Essa Alemanha era, então,
“uma coisa politicamente ainda não existente”. E de certo modo vivemos hoje um
certo paralelismo entre um ideal universitário, que se deslocava dos
particularismos dos principados para um Estado nacional, e um novo ideal
universitário, que se desloca do Estado nacional para o horizonte planetário.
Por fim, é importante apontar que, neste contexto, Humboldt uniu a exigência de
uma ampliação do horizonte social da ciência com a exigência de liberalidade e
de superação da tutela política das universidades. Em particular, Humboldt
criticou a proibição do estudo em universidades estrangeiras promulgada pelo
rei da Prússia, expressando seu desejo de que fosse “formalmente superada, pois
ela colide com a liberalidade que deve reinar em todas as coisas científicas”.
Como reconhecer a importância desse
vulto histórico que, em 1967, completaria 200 anos de nascimento? Será que temos
de reconhecer a férrea contradição de, por um lado, louvar sua contribuição
para o desenvolvimento da ciência e da cultura na Alemanha moderna, e, por
outro, dar “adeus a Humboldt” como condição do progresso da ciência e da cultura
em nosso mundo de hoje? Não é essa nossa posição.
Mas nos parece, antes de mais nada,
necessário reconhecer que não nos interessam primordialmente as soluções humboldtianas,
em sua contingência histórica, corporificadas numa forma institucional
específica: um modelo universitário. O que nos interessa é o possível
paralelismo histórico das tarefas diante das quais Humboldt se colocou e
arriscou uma resposta, e aquelas diante das quais nos colocamos. E, também, o
reconhecimento de que talvez a imagem-diretriz ideal com que ele solucionou os
problemas de seu tempo/
espaço siga sendo um pertinente ponto de
apoio para tentativas de discernimento de problemas de nosso tempo/espaço. Ou,
expressos nos termos do idealismo alemão do século XIX: nossa questão é saber
se somos capazes de realizar a idéia humboldtiana em novas formas
institucionais.
A situação com que Humboldt se defronta
em 1809 é uma em que o Estado e a sociedade do Iluminismo se inclinavam
inteiramente, em nome do progresso econômico, técnico e social, para uma formação
profissionalizante, pragmática e cientifizada. O movimento em prol de um saber prático
útil impulsiona a reforma da Universidade tradicional, transformando-a numa
escola superior especial para formação profissional. Ao utilitarismo iluminista
(hoje diríamos ao funcionalismo científico) contrapõe Humboldt um aprofundamento
espiritual apoiado na referência ético-ideal à ciência que cria uma nova
Universidade. A imagem-diretriz dessa Universidade funda-se numa decisão contra
a ciência pragmática e a favor da ciência pura. O surpreendente foi que,
precisamente por meio dessa decisão, a universidade gerou, no século XIX, um
novo servidor público estatal academicamente formado, com um perfil de competência
e uma ética profissional até então desconhecidos.
Hoje muito mudou. Mas continuamos
defrontados com dois desafios: (1) a necessidade de formação profissional para uma
camada cada vez mais ampla de empregos científico-técnicos; e (2) o
aprofundamento da pesquisa voltada para aplicações imediatas segundo critérios
industriais de produtividade nos campos da economia, da técnica e das atividades
militares. Diante desses desafios, a teoria contemporânea da sociologia do
conhecimento, propondo o enquadramento da produção científica nos cânones da racionalização
do trabalho, ainda reconhece pelo menos uma questão de sabor humboldtiano como
estrategicamente nevrálgica: a “criatividade” dos pesquisadores, de certo modo
a “última relíquia” de um grande projeto e o padrão organizacional com ela
congruente.
No projeto universitário humboldtiano,
professores e estudantes são pessoas em permanente aprimoramento de virtudes,
não em simples acumulação quantitativa de conhecimentos. O decisivo não é o
quanto alguém sabe/domina, mas sim que postura assume na permanente busca das
verdades. Não é em torno da “posse da verdade” que a universidade deve se
organizar como uma mera instituição especializada de ensino, mas em torno da
busca de verdades, como espaço institucional de aprendizagem. A escolarização
da Universidade pretende fazer da liberdade de ensino, e não da liberdade de
aprendizagem, o cerne da questão da autonomia universitária. Mas somente a
liberdade de aprendizagem é compatível com a perspectiva humboldtiana de uma
“ciência com consciência”, para a qual o estudo não é a mera transmissão de
saberes estruturados, mas sim um compartilhar de uma forma existencial, um ser onde
saberes se inserem. E o caminho para se compartilhar esse ser é o diálogo
socrático. Humboldt via “a solidão e a liberdade” como as condições de
realização de sua universidade. Isto pode ser traduzido como os meios de realização
do que Max Weber chamou de “a ciência como vocação”, ou, mais contemporaneamente,
nas palavras de um mestre que tive a alegria de conhecer, Helmut Schelsky: “a
exigência de concentração, dedicação integral, autodeterminação e
responsabilidade na fixação de objetivos e aplicações da pesquisa universitária
por parte de docentes e pesquisadores”.
Mas será possível e legítimo
pretendermos hoje a “solidão e liberdade” humboldtianas? O entrelaçamento da praxis
científica com tecnologia, economia, sociedade, Estado, militar parece tornar tal
pretensão uma impossibilidade. No entanto eu gostaria de afirmar que essa
aparente impossibilidade não é um fato novo. Ela já existia em 1908.
Diante desse “fato velho”, o “fato novo”
foi o projeto universitário de Humboldt. Assim, fazendo tardio eco aos muros de
1968, podemos dizer: ser razoável (não apenas racional) é tentar o impossível
como horizonte da vocação, e ser apenas racional é resignar-se ao cálculo
utilitarista das conseqüências de cursos alternativos de nossas ações.
Humboldt introduz uma nova relação entre
a Universidade (e com isso a ciência) e o Estado. A solução humboldtiana
assegurou a autonomia da ciência dentro do quadro hegemônico do sistema
político do século XIX na Prússia. Hoje sua solução, fundada na autonomia da
“cultura” com respeito ao “Estado”, revela-se insustentável. A autonomia da
Universidade contemporânea está imersa no campo de tensões de forças políticas,
econômicas e militares. Não está salvaguardada numa suposta autonomia da cultura.
Assegurar a autonomia universitária
pressupõe, hoje, a autocompreensão da ciência como força política, interlocutora
ativa das instituições da sociedade civil, do Estado e da economia. Assim, num
eco muito mais tardio ainda aos esforços socráticos por salvar a “razoabilidade
da razão” do naufrágio do relativismo sofista, podemos dizer: a ciência
verdadeiramente livre é o conhecimento do Bem numa contínua busca amorosa, que
se traduz em compromisso com a vida.
Humboldt via a diferenciação da
Universidade com respeito às instituições “escolares” de ensino como um princípio
fundamental. Parece que estamos agora diante da mesma tarefa. Mas a linha demarcatória
deslocou-se para o interior da própria Universidade. O deserto da escolarização
cresce, tomando quase que inteiramente os espaços dos cursos de graduação. A
“solidão e liberdade” humboldtianas parecem circunscrever-se a alguns espaços
minguantes da pós-graduação em sentido estrito, dos cursos de mestrado (cada
vez menos) e doutorado (poucos). Esses “oásis” no deserto universitário são os
campos férteis que nos restam para o florescimento daquela que talvez seja a
mais esquecida das exigências da idéia universitária de Humboldt: a união da
ciência com a Geselligkeit, uma velha palavra alemã em desuso que podemos,
talvez, traduzir por “convivencialidade”, uma atividade conjunta
não-condicionada pela eficácia e sim fundada em livres-associações, afinidades eletivas
e fruição do prazer vocacional, elementos irredutíveis aos critérios
utilitaristas da eficiência apenas instrumental.
A segunda metade do século XX assistiu a
uma sucessão de transformações na estruturação das universidades como centros
produtores e difusores de conhecimento. Uma estrutura gerencial matematicamente
controlável foi superposta, em nível planetário, às universidades “tradicionais”.
E essa estrutura se apóia sobre três elementos de base, transpostos de seu
contexto originário norte-americano: o departamento, o currículo e o campus.
Sobre esse tripé se construiu a “grande transformação transnacional” das
universidades, que doravante devem se tornar “fábricas que reproduzem o exato
tipo de know-how necessitado pela civilização tecnológica”.
O resultado é uma sistemática desqualificação
dos conhecimentos das culturas regionais. Como aponta H. A. Steger, essa
desqualificação é o inverso da qualificação profissional que prepara o
indivíduo para desempenhar tarefas ‘superiores’: ela o prepara para tarefas crescentemente
subordinadas e subalternas. Os departamentos são as unidades operacionais das
“universidades/fábricas”. Os professores são as ferramentas-agentes de uma
“linha de montagem” (o currículo), mas ao mesmo tempo representam os produtos
finais de tal linha.
Na operacionalização departamental dos
“currículos/linhas-de-montagem os estudantes são a matéria-prima a ser
trans-formada, cujo estado futuro é espelhado diante deles nas figuras dos
professores, como “ferramentas preparadas para produzir cérebros para
profissões específicas”. Resulta da “grande transformação transnacional das
universidades” a “desqualificação provincializante do intelecto”, adestrado para
ser “algo utilizável exclusivamente para aquele fim para o qual a linha de
montagem está ajustada”.
O processo revela uma de suas facetas
perversas, se considerarmos o sucateamento de cérebros descartáveis pelo sempre
mutável horizonte de “empregabilidade” das sociedades industriais. É uma opção
economicamente racional (ou seja, mais lucrativa) empregar um novo cérebro,
treinado segundo os últimos requisitos do progresso tecnológico, do que manter
por tempo indeterminado empregado um cérebro obsoleto, ou arriscar-se a
“reciclá-lo”. Soma-se a isso o fato de que os postos de trabalho para os
cérebros prestadores de serviços industrial-produtivamente úteis são minguantes,
se considerarmos a possibilidade de uma contínua transposição das funções
rotinizadas para circuitos cibernéticos de controle informacional.
As idéias que vinculavam a formação
profissional-universitária com a formação ética da pessoa, identificando na educação
um verdadeiro processo de “transmutação alquímica” da personalidade, parecem
relíquias do passado. Ou, numa imagem menos gentil, restos de um cadáver insepulto.
Mas como não nos deixam esquecer alguns pensadores “resistentes”, “na Europa do
século XVIII (e antes dele), as escolas em todos os níveis eram estimadas como ‘minas’
produzindo o ‘ouro da razão’ ”. E esse ‘ouro da razão’ era produzido pela superação
da ingenuidade pré-científica, num processo gradual que devia necessariamente
incluir em si a elevação ético-moral do aprendiz, a repressão de crenças
irracionais patéticas e a preservação da coesão social.
Se quisermos atualizar essa proposição,
devemos reconhecer que a ingenuidade que necessitamos hoje urgente-mente
superar deixou de ser pré-científica. Ela se fundamenta na trivialização da
tecnociência, popularizada pelas mensagens “explicativas” ou “prospectivas” da
media e pelas aplicações cotidianas, como uma estrutura existencial de referência
da vida moderna. Recuperar a possibilidade de uma elevação ético-moral do
aprendiz requer sua destutelarização com respeito à “trivialização” do humano pela
interface tecnológica, a repressão da crença “salvacionista” nos poderes da
tecnociência, e a prudente e zelosa preservação da sustentabilidade da síntese
social de uma civilização científica.
Atualizar, para o mundo contemporâneo, a
transmutação alquímica do “ouro da razão” requer desenvolver na pessoa do
aprendiz a aptidão para desvelar o jogo “trivializante” que se joga na
“interface tecnológica”. Re-quer nomear seus agentes. Requer identificar quem
são os “senhores da globalização contemporânea”. Quem perde e quem ganha. E não
fazer de um estado de coisas uma inelutável força do destino e, no exercício
dessa confrontação ética, “recordando a fórmula socrática, poderia ser dito que
hoje, mais que nunca antes, a educação da pessoa necessita de uma forma de
‘ironia tecnocientífica’, sem a qual não seria capaz de sobreviver como um
intelecto independente, mas seria ‘trivializado’, feito um cérebro descartável”.
É claro que as “reformas” em curso
visando o aprimoramento do desempenho das universidades/fábricas visando uma
integração competitiva no mundo da globalização contemporânea não promovem
qualquer “ironia tecnocientífica”. Isso implicaria reconhecer e reafirmar uma
primor-dial independência do conhecimento, sua autonomia com respeito as
imposições da “razão de mercado”, da “razão de Estado” ou qualquer eco ao
“discurso da servidão voluntária” (E. de la Boétie).
H. Lefèbvre, em meio à Revolta de 1968,
advertia aos portadores de uma certa miopia contestatória, de suposta raiz
marxista, que a lógica formal não é uma mera forma superestrutural, perecível
junto com a “morte” de relações estruturais da “base” econômica que a tenham
engendrado. Em outras palavras, a lógica é indestrutível. E, como nos aponta H.
A. Steger, a lógica “aparece em nossa civilização como o modo estável de conhecimento.
E essa natureza global e unitária do conhecimento é vitalizada pela pesquisa e a
aplicação prática”. Nesse contexto, a tarefa da produção do “ouro da razão” não
pode ser confundida com irracionalismos diversos, que jogam fora a criança
junto com a água suja do banho.
A “ouro da razão” está ali, onde a
comunidade de intelectuais universitários ousa uma “reconstrução do
conhecimento” expropriando seus expropriadores, e “isso é necessário para
libertar o conhecimento de sua servidão, mas sem destruí-lo, num processo
similar à restauração de um precioso quadro, transferindo-o de uma moldura para
outra”.
Atualizar o exemplo de Humboldt no
Brasil hoje implica repensar a questão “ciência e universidade” desde o fundamento,
e traduzir esse pensamento para uma solução própria, não para uma cópia
anacrônica. É não se deixar “herodianizar”, vivendo como uma “elite
intelectual” que tem apenas os pés na Palestina, mas a cabeça em Roma, e que
tantas vezes traveste a “excelência acadêmica” na medíocre mimésis de uma
produção seriada de papers para re-vistas científicas de circulação
internacional. Uma “elite intelectual” desenraizada de seu povo, seu lugar, sua
história.
Somente o esforço por nos tornarmos o
que somos pode fazer da herança universitária humboldtiana uma tarefa. E de Humboldt
nosso contemporâneo.
REFERÊNCIAS
BIBLIOGRÁFICAS
DUPUY,
J. P. & ROBERT, J. La Trahison de l’Opulance. Paris, PUF, 1976.
HUMBOLDT,
W.
Ideen zu einem Versuch die Grenzen der Wirksamkeit des Staats zu bestimmen.
Stuttgart, Reclam Verlag, 1978.
LEFÈBVRE,
H.
L’Irruption de Nanterre au Sommet. Paris, Anthropos, 1968.
SCHELSKY,
H.
Einsamkeit und Freiheit. Idee und Gestalt der deutschen Universität und ihrer
Reformen. Reinbek bei Hamburg, Rowohlt Taschenbuch Verlag, 1963.
STEGER,
H. A.
(ed.) Alternatives in Education. Wilhelm Fink Verlag. Munique, 1984.
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