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“Gestão e Negócios Sustentáveis”, de autoria de Superdotado Álaze Gabriel.
Disponível
em http://www.gestaoenegociossustentaveis.blogspot.com.br
Autoria:
UNESCO/ONU.
INTRODUÇÃO
Um lago evapora e, pouco a pouco, vai se
esgotando. Mas quando dois lagos estão unidos, eles não secam tão facilmente,
pois um alimenta o outro. O mesmo ocorre no campo do conhecimento. O saber deve
ser uma força revigorante e vitalizadora. Isso só é possível quando há um
intercâmbio estimulante com amigos afins, em cuja companhia se possa debater e
procurar aplicar as verdades da vida.
As universidades surgidas na Europa do
século XII foram, em sua organização e em seus métodos de ensino, uma criação
original dos latinos medievais. A organização e os conteúdos de seus
currículos, no entanto, foram em boa parte “importados”, por meio de traduções
para o latim de conhecimentos filosóficos e científicos greco-árabes, com os temas
filosóficos aportados pelas traduções influenciando a caracterização de um novo
tipo de homem, que terá, nas universidades, o domicílio do exercício de seu
ofício vocacional.
É um evento pleno de conseqüências portadoras
de um futuro. Nosso futuro. O futuro de uma civilização que fez da ciência e da
tecnologia a condição de possibilidade de um novo mundo.
OS
PRIMÓRDIOS DA UNIVERSIDADE
Um traço importante na genealogia de
nosso “Novo Mundo” é a “linhagem” das instituições produtoras de conhecimento.
Para isso, nossa atenção vai ser centrada na genealogia das nascentes universidades
no contexto da Europa Medieval cristianizada. A partir do século VII,
aproximadamente, as atividades de ensino na cristandade latina mantinham-se,
quase que em sua totalidade, sob a alçada da Igreja, em particular vinculadas a
mosteiros. A finalidade do ensino não era mais, como no mundo romano, manter a
uniformidade cultural nos diversos pontos do império e preparar para a vida
pública, mas dotar a Igreja de membros capacitados a preservar e compreender as
Escrituras e textos doutrinários e a participar da administração eclesiástica.
Cerca de quatro séculos mais tarde, com
a revitalização das cidades, as escolas monásticas começaram a perder
in-fluência em favor de escolas urbanas, ligadas a igrejas e a catedrais, em
geral. Esse tipo de escola não surgiu no século XI; já existia, em alguns
lugares, há bastante tempo. Nesse período, no entanto, elas aumentaram em
número, tamanho e importância e passaram a ter maior continuidade. Esse aumento
respondia à aguda consciência da necessidade de um clero secular melhor
preparado, capaz de desempenhar tarefas mais complexas e com uma compreensão
mais profunda do próprio cristianismo, assim como ao crescente engajamento, nos
estudos, de pessoas sem interesse na carreira eclesiástica.
Inicialmente, os professores das escolas
episcopais costumavam ser integrantes do capítulo da Igreja, mas o crescimento
do número de interessados em aprender, em particular no século XII, levou à
necessidade de delegar parte do ensino a pessoas externas ao capítulo. Esses
“professores agregados” ensinavam em dependências das igrejas ou catedrais e,
num momento posterior, puderam manter escolas independentes, mediante a
concessão de uma licença especial, que seria chamada licentia docendi e que, a
princípio, só tinha valor no território em que o outorgante havia até então
tido monopólio sobre o ensino. Surgiram, assim, várias escolas sem vínculos
diretos com uma igreja ou um capítulo, a partir da reunião entre professores e
alunos interessados em seu ensinamento, os quais eram, freqüentemente, responsáveis
pela remuneração do professor e pelo paga-a palavra “leigo” não deixaria mais
de ser sinônimo de ignorante em algum grau ou domínio.
O estabelecimento dessas associações
decorria não apenas do crescimento do número de professores e alunos, mas principalmente
da consciência crescente, entre eles, de que constituíam um grupo particular e
partilhavam necessidades específicas. Decorria do surgimento e fortalecimento,
em seu meio, de um espírito de corpo reforçado, com freqüência, por eventos que
despertavam reações coletivas. Não eram as escolas ou cursos que se reuniam:
continuavam consistindo na reunião de um professor e seus alunos, com sua própria
forma de conduzir o ensino; continuavam, de certa forma, concorrentes; passavam
a integrar uma “federação”.
Eram as pessoas que se agrupavam, de
modo similar às que estabeleceram outras associações típicas do ambiente urbano
da época, como as corporações de ofícios e as confrarias de mercadores. O
objetivo era defender seus interesses e reivindicar o que julgavam ser suas
prerrogativas, inclusive no que dizia respeito à regulamentação do ensino e ao
controle de abusos praticados por alunos ou professores.
Ao longo do século XIII, essas
corporações e a organização do ensino foram sendo gradativamente
regulamentados, dando origem a um novo tipo de instituição.
As “antepassadas” das universidades
haviam mantido, com poucas adaptações, o modelo de educação da Antigüidade
tardia romana, não apenas quanto a métodos, mas também quanto a conteúdo, ainda
que inicialmente seus programas se restringissem a uma parcela reduzida do conteúdo
original. Com o passar do tempo, essa parcela foi sendo aumentada, nas escolas
monásticas e episcopais, com a busca e o intercâmbio de textos na própria rede
de bibliotecas dos mosteiros. Isso levava à ampliação e ao aprofunda-mento das
disciplinas ensinadas e a algumas tentativas, de início tímidas, de retomar a
modesta cultura filosófica disponível como fonte de instrumentos de pesquisa e
interpretação das Escrituras e da doutrina. Criava-se, com isso, uma expectativa
e uma demanda por mais textos.
A partir do século XII, o material
disponível ampliou-se consideravelmente. Intensificou-se a exploração e a difusão
dos recursos disponíveis em latim e iniciou-se o movimento de tradução de
textos, principalmente a partir do árabe, nas regiões sendo tomadas aos
muçulmanos (Península Ibérica e Sicília). Grande parte dos conhecimentos
filosóficos e científicos do legado grego havia sido traduzida para o árabe,
estudada e desenvolvida por pensadores islâmicos.
As traduções possibilitaram, assim, o
encontro não só com material produzido por autores antigos, mas também com os
comentários e desdobramentos produzidos por pensa-dores do mundo islâmico.
A
ACOLHIDA DA FILOSOFIA
Os conhecimentos — nos ramos da filosofia,
do direito, da medicina e de várias ciências — postos em circulação pelos
movimentos descritos anteriormente, foram de extrema importância para os integrantes
das primeiras universidades. Coube a eles a tarefa de absorver esses conhecimentos,
o que realizaram, por vezes, com avidez e em geral com satisfação. Houve não
apenas uma gradativa introdução de novos elementos nos programas de estudos: as
concepções de ciência e a sistematização das áreas do conhecimento oriundas do
aristotelismo foram tomadas como base dos currículos elaborados pelas
universidades.
O acolhimento e a digestão desse corpo
filosófico, com destaque para o peripatetismo greco-árabe, foram realizados, em
graus e perspectivas diferentes, por integrantes dos cursos de artes liberais e
de teologia. O primeiro era um curso preparatório para os demais (teologia,
medicina e direito), e seu programa, que anteriormente abrangera as artes
liberais tradicionais do mundo antigo, modificou-se, ao longo do período de
estabelecimento das universidades, para enfatizar o estudo da filosofia,
tomada, então, como sinônimo do aristotelismo recém-descoberto. No campo da
teologia, houve a elaboração das grandes sínteses teológicas que caracterizaram
o século XIII, produzidas a partir da integração, da avaliação ou da rejeição
de elementos da filosofia peripatética, que foi o grande impulso para sua
produção.
Essas transformações não ocorreram sem
divergências e conflitos, que opuseram por vezes integrantes da faculdade de
artes e da faculdade de teologia ou de uns e outros com a hierarquia da Igreja.
Uma das divergências mais polêmicas diria respeito à teoria aristotélica sobre
a alma, o intelecto e o processo de conhecimento. A interpretação dessa teoria
e de comentários a ela feitos por Averróis, associada à de parte da ética
aristotélica realizada por professo-8. No caso dos estudos de medicina, talvez
fosse melhor dizer que constituíram integralmente o programa.
Essa e outras teorias tidas como
vinculadas em excesso, e em detrimento da verdade cristã, ao pensa-mento
peripatético, sofreram várias censuras oficiais ao longo da segunda metade do
século XIII. Nas esquinas da cidade, novos horizontes da organização da cultura.
Nas escolas monacais, as tarefas ligadas ao ensino não eram as únicas ocupações
dos monges por elas responsabilizados. Não eram valorizadas por si mesmas nem definiam
vocações. Algo similar acontecia com os integrantes do clero secular que
ensinavam nas escolas catedrais. Para eles, também o ensino era uma tarefa
entre outras.
A transformação mais notável ocorreu no
século XII, nas escolas urbanas que então surgiam ou se fortaleciam. Nelas o
ensino de conhecimentos profanos ganhava um espaço maior, visando qualificar
não apenas o clero, mas tam-bém leigos que desempenhariam funções fora da
Igreja. O próprio aumento da importância e do âmbito do ensino criava a
necessidade de maior especialização e dedicação. Alguns de seus professores
começaram a se caracterizar especificamente por suas atividades docentes e por
sua qualificação em executá-las, e a se profissionalizar, recebendo uma remuneração
específica pelo ensino que proporcionavam.
A tendência à especialização e à
profissionalização cresceria nas universidades, corporações formadas justamente
por pessoas caracterizadas por seus vínculos com o estudo, seja como
professores seja como estudantes. A vida intelectual tornava-se um ofício,
“pelo qual se é remunerado, e que tem suas técnicas, seu aprendizado e sua
corporação” (Paul, 1973: 276). Nelas a maior parte dos professores, ainda que pudessem
desempenhar tarefas além das docentes, definiam-se por serem professores e
especialistas. Além disso, boa parte do ensino tinha como finalidade exatamente
preparar para ensinar. O desempenho de atividades docentes era uma das
finalidades do aprendizado — além de ser um dos meios através do qual ocorria.
O reconhecimento da condição de
especialistas ficava explícito, por exemplo, quando se buscava o conjunto de doutores
ou alguns entre eles, a fim de obter sua opinião — tida como fundada, como
qualificada — sobre um determinado assunto. Isso acontecia em relação aos
diversos cursos universitários — direito canônico ou romano, medicina, artes ou
teologia. Nesse último domínio, a transformação foi mais notável, uma vez que o
corpo de mestres em teologia passou a ser reconhecido na Igreja como tendo
autoridade para elaborar doutrina em matéria de fé, o que deixava de ser
exclusividade dos concílios. Os universitários eram re-conhecidos como tendo um
valor e uma função específicos para pelo menos parte da sociedade, em razão de
seu conhecimento, de sua qualificação.
As escolas urbanas e suas sucessoras, as
escolas universitárias, tinham uma ligação bem maior do que as monásticas com o
contexto em que se encontravam e suas necessidades. O número de leigos entre os
alunos cresceu, principalmente nas universidades. O ensino se ampliava, proporcionando
formação de profissionais que exerceriam funções fora da estrutura
eclesiástica. Mesmo a Igreja passava a ter necessidade de maior diversidade de
quadros, por ter ganhado, nesse mesmo período, uma estrutura bastante centralizada
e complexa, com uma burocracia mais ampla.
DO
CLÉRIGO AO INTELECTUAL
Foi em razão dessas ligações que Le Goff
apontou o surgimento da figura do intelectual, como tipo sociológico, como um
dos aspectos do desenvolvimento urbano e das transformações econômicas, sociais
e políticas ocorridas nas cidades florescentes dos séculos XII e XIII. Escolheu
o termo intelectual, embora ele não fosse utilizado na época, principalmente
com o sentido hoje corrente, por não encontrar entre os usados na época um que
melhor conviesse para diferenciá-lo do clérigo e designar “os que fazem do
pensar e do ensinar seu pensamento uma profissão”, caracterizados pela “aliança
entre a reflexão pessoal e sua difusão através do ensino” (Le Goff, 1993:18).
Abelardo seria a primeira grande figura de intelectual nitidamente distinta dos
eruditos dos meios monásticos.
A existência do intelectual teria
resultado da divisão de trabalho ocorrida nos ambientes urbanos. Seria mais um
dos ofícios especializados surgidos nesse período de “redescoberta do homo
faber”, em que o homem se afirmava “como um artesão que transforma e cria” (Le
Goff, 1993: 54): “É como um artesão, como um profissional comparável aos demais
citadinos, que se sente o intelectual urbano do século XII. Sua função é o
estudo e o ensino das artes liberais. Mas o que é uma arte? Não é uma ciência,
é uma técnica. Arte é a especialidade do professor, assim como o têm as suas o
carpinteiro ou o ferreiro. [...] Arte é toda atividade racional e justa do
espírito, aplicada tanto à produção de instrumentos materiais como
intelectuais: é uma técnica inteligente do fazer. [...] Assim o intelectual é
um artesão [...]” (Le Goff, 1993: 57).
Além de artífice e produtor de
conceitos, o intelectual seria ainda como um comerciante, fazendo circular ideias
como aquele fazia circular mercadorias e sendo por isso re-munerado. “As
cidades são centros de irradiação na circula-ção dos homens, tão plenas de
idéias como de mercadorias, lugares de trocas, mercados e encruzilhadas do
comércio intelectual” (Le Goff, 1993: 25).
Além disso, o intelectual teria
consciência de suas peculiaridades e do papel a assumir: jamais, “antes da
época contemporânea, esse meio foi tão bem delimitado, nem alcançou mais nítida
consciência de si mesmo que na Idade Média” (Le Goff, 1993: 18). Essa
consciência se daria pela identificação com os ofícios, com sua função de
profissional e de citadino. A formação das universidades espontâneas —
associações de iguais, semelhantes em muitos aspectos às corporações de ofícios
ou às confrarias de mercadores — seria um sinal dessa consciência.
Jacques Le Goff (1993) vê, no entanto, o
intelectual rapidamente trair a si mesmo, apesar da consciência de suas características,
por não saber vencer as ambigüidades em que se encontrava, por não se
comprometer o suficiente com a consciência que tinha de si mesmo. O intelectual
“[...] que conquistou seu lugar na cidade se mostra entretanto incapaz, face às
alternativas que se abrem diante dele, de escolher as soluções do futuro.
Dentro de uma série de crises que se poderiam denominar de crescimento, e que
são os sinais da maturidade, ele não sabe optar pelo rejuvenescimento, e se
instala nas estruturas sociais e nos hábitos intelectuais nos quais submergirá”
(Le Goff, 1993: 60).
Comprometer-se adequadamente com “as
soluções do futuro” seria reforçar a identificação com os profissionais leigos
burgueses (Le Goff, 1993: 64), ultrapassar as ambigüidades de sua situação, da
corporação à qual pertenciam. Le Goff (1993) ressalta as contradições da corporação
universitária. A primeira delas seria seu caráter eclesiástico: não se
encontrou melhor meio de garantir a autonomia da nova associação senão
reafirmando sua sujeição à jurisdição eclesiástica. “Nascidos de um movimento
que tendia à laicidade, eles pertenciam à Igreja, mesmo quando procuram
institucionalmente sair dela” (Le Goff, 1993: 64).
Embora as escolas tenham se desenvolvido
como mais uma instituição nova surgida nas cidades, a Universidade “ultrapassou
o quadro urbano onde se formou”. A corporação universitária não tinha, como as
demais, “o monopólio sobre o mercado local. Sua área é a cristandade”. Ela
tinha um caráter universal, internacional, por atrair estudantes de várias
partes e, no caso das instituições mais importantes, conceder uma licença
válida em toda a parte.
A defesa dos interesses de seus
integrantes levava-a mesmo “a se opor — às vezes violentamente — aos citadinos,
tanto no plano econômico quanto no jurídico e político” (Le Goff, 1993: 64). Outra
fonte de contradição seria as formas de subsistência dos universitários. Nem
todos os professores viviam de salários, pagos por seus alunos ou pelos poderes
civis. Boa parte deles, assim como dos alunos, viviam de benefícios ou prebendas,
muitas vezes ligados a funções ou cargos sem nenhuma ligação com o ensino. As
escolhas ocorriam em função das circunstâncias, das possibilidades existentes.
Essa situação ia contra a afirmação deliberada do intelectual “como um
trabalhador, como um produtor”. O afastamento do mundo dos demais
trabalhadores, que iria minar “as bases da condição universitária” (Le Goff,
1993: 86), teria sido reforçado pela oposição entre trabalho manual e trabalho intelectual
mantida pela escolástica. Além disso, a remuneração por “privilégios” acentuava
o caráter eclesiástico do ensino.
Os intelectuais teriam, pela
incapacidade de ultrapassar essas contradições, reforçado a vinculação com a
Igreja e o Estado, deixando de se tornar os “intelectuais orgânicos” das
classes produtoras urbanas surgidas no mesmo movimento que eles. Ao fim dessa
evolução profissional, social e institucional, havia um objetivo: o poder. Os
intelectuais medievais não escapam ao esquema gramsciano, na verdade muito
genérico, mas operacional. Em uma sociedade ideologicamente controlada muito de
perto pela Igreja e politicamente cada vez mais enquadrada por uma dupla
burocracia — a laica e a eclesiástica (...) —, os intelectuais da Idade Média
são, antes de tudo, intelectuais “orgânicos”, fiéis servidores da Igreja e do
Estado. As universidades se tornam cada vez mais celeiros de “altos
funcionários” (Le Goff, 1993: 9)
A
PERFEITA FELICIDADE
A perspectiva sociológica de
consideração do surgimento dos intelectuais medievais, de que o livro Os
intelec-13. Os “intelectuais orgânicos” seriam os que cada “grupo social,
nascendo no terreno originário de uma função essencial no mundo da produção econômica,
cria para si, ao mesmo tempo, de um modo orgânico” e que lhe dariam
“homogeneidade e consciência da própria função, não apenas no campo econômico,
mas também no social e político”. As camadas de intelectuais, criadas de modo
orgânico pelos grupos sociais ao surgir, encontrariam “categorias intelectuais
preexistentes”, que seriam os intelectuais tradicionais. (Gramsci, 1982: 3-5.)
Falei em “inspiração gramsciana” porque
Le Goff utiliza as concepções de Gramsci a respeito dos intelectuais com
bastante liberdade, sem se prender rigorosamente aos critérios por ele buscados
para definir os intelectuais.
Nossa visão sobre esse fenômeno se
enriquecerá se analisarmos o nascimento do ideal intelectual, como propõe De Libera
em Penser au moyen âge. Sua posição é que “os intelectuais medievais afirmaram
eles mesmos sua diferença” e “representaram eles mesmos sua singularidade, é
essa representação, essa consciência de si, essa ‘estima’, ou melhor, essa
auto-avaliação que deve ser, no presente, estudada”.
Em suma, devemos tentar “entender a
reivindicação da intelectualidade como tal” (De Libera, 1991: 11). Desde essa
perspectiva, o aparecimento do intelectual medieval se caracterizaria pelo
ressurgimento de um ideal ético antigo, concorrente ao cristão. Isso teria
ocorrido, em particular, entre os aristotélicos radicais da faculdade de artes
da universidade de Paris, a partir das sétima e oitava décadas do século XIII.
Foram eles que mais buscaram uma identidade própria, que os distinguisse dos
modelos anteriores de professores, qualificando-se como filósofos. Não se quer
dizer com isso que tal grupo tenha tido o monopólio da filosofia na universidade
medieval. O pensamento filosófico não ficou restrito às faculdades de artes.
Foi ampla-mente desenvolvido nas faculdades de teologia, não fazendo sentido
falar em oposição razão e fé em relação aos conflitos intra-universitários do
século XIII: pode-se falar, no máximo, em modalidades diferentes de exercício
da razão.
Os artistas heterodoxos parisienses
desejaram se distinguir atribuindo-se a si mesmos, explicitamente, uma identidade
por meio da exaltação da vida filosófica, como um novo e diferenciado estilo de
vida. “Esse movimento, que podemos denominar ‘aristocratismo intelectualista’
nasceu da familiaridade com textos filosóficos greco-árabes, ao mesmo tempo que
reativava certas postulações, certos desejos que eram buscados antes dele
[Siger de Brabante], em particular na época de Abelardo” (De Libera, 1991: 23).
No livro La philosophie, théorie ou
manière de vivre? Les controverses de l’Antiquité à la Renaissance, Domanski
destaca a tendência, entre os artistas heterodoxos parisienses, de se considerar
a filosofia de maneira não apenas teórica, como instrumento conceitual, mas
também como modo de vida.
Um componente do aspecto prático da
filosofia seria a ética, concebida não apenas como ciência, mas como “ética
realizada, uma ciência dos costumes não apenas teórica, mas também ‘praticada’,
encarnada por assim dizer, nos costumes do filósofo, uma arte de viver exercida
por si mesma”
(Domanski, 1996: 11). O encontro entre a
filosofia e o cristianismo teria conduzido a um questionamento do aspecto prático
da filosofia, da ética realizada pelos filósofos (Domanski, 1996: 23-29). A
cristianização da filosofia incluiu a negação ou redução de sua vertente
prática, uma vez que se considerava que o modo de viver perfeito era ditado
pelo próprio cristianismo; a fonte da moral e da ética eram as verdades
reveladas do Evangelho, cuja vivência integral de virtudes dependia da graça
divina.
A tendência predominante, no século XII
e na escolástica do século XIII, seria dar à filosofia um caráter simples-mente
“teórico” e “científico”, de forma ainda mais radical que no início do
cristianismo: “o adepto da filosofia não era senão um leitor e um comentador
dos escritos de Aristóteles” (Domanski, 1996: 49-50). A tendência predominante
era a de considerar que “[...] o papel de um filósofo se limita a comentar,
explicar e, eventualmente, desenvolver a verdade descoberta pela razão natural
e contida nos escritos de Aristóteles. [...] Desse ponto de vista, os problemas
éticos situam-se no mesmo plano que todos os demais e [...] a filosofia
prática, como filosofia, logo, como pesquisa científica, não difere de modo algum
de todos os outros ramos.
Uma moralidade ativa, uma ética
praticada, tudo isso pertence a outra ordem” (Domanski, 1996: 50-51). Nesse
quadro, a corrente dos artistas heterodoxos parisienses do século XIII seria
uma das exceções ao movimento principal, por atribuir “à filosofia uma
autonomia completa, sem considerá-la como simples propedêutica à doutrina
cristã”, estando, portanto, “mais inclinada que as outras correntes a
aproveitar esses elementos metafilosóficos do aristotelismo que se relacionavam
com a vida filosófica como moral praticada” (Domanski, 1996: 70). Desde essa perspectiva
o filósofo, vivendo conforme a natureza humana, seria o verdadeiro virtuoso,
por ter condições de distinguir corretamente as virtudes dos vícios. Nele,
todas as funções e ações inferiores estariam ordenadas “à função suprema e à
ação mais elevada: isto é, a especulação sobre a verdade e sua fruição, em
particular a verdade primeira” (Domanski, 1996: 72-73).
O
LEGADO PERIPATÉTICO ÁRABE
O espírito racional de Aristóteles, suas
concepções sobre o conhecimento, sobre seus diferentes domínios e métodos,
foram fundamentais para o surgimento da universidade e a formulação do novo
modelo de professor surgido nos meios urbanos, para a consciência das
peculiaridades do homem dedicado de modo expresso à transmissão do conhecimento
e para a valorização de sua ocupação.
Mas devemos considerar que o ideal do
filósofo na Idade Média não teria surgido sem legado dos peripatéticos do mundo
islâmico e sua leitura do aristotelismo, integradora a concepções
neoplatônicas. A contribuição dos autores muçulmanos foi fundamental para a
formulação do ideal de vida filosófica defendido pelos artistas parisienses da segunda
metade do século XIII. Segundo A. de Libera este ideal entrelaçou dois motivos
desenvolvidos por pensadores islâmicos: a idéia de um crescimento progressivo
do saber e a de uma ascese intelectual.
O primeiro motivo já se encontrava
presente nos textos de Al-Kindi. Inspirado em Aristóteles, mas também em princípios
islâmicos sobre o conhecimento, propunha a “tese de um crescimento do saber, de
um progresso, de uma construção gradual do pensamento e da sabedoria,
implicando o concurso de uma multidão de homens.” O segundo, seria “idéia
ético-intelectual do destino do homem” (De Libera, 1991: 140).
A visão do universo adotada pelos
filósofos árabes definia “[...] o ato de pensamento como um estado do universo
inteligível, como um grau de unidade e de unificação da alma, que podia se
intensificar à medida que se operavam a ‘continuação’, a ‘conjunção’ da alma
humana com a inteligência separada que, na cosmologia peripatética, presidia os
movimentos do mundo sublunar. O progresso, o crescimento do saber, tinha desde
então um sentido complexo, ao mesmo tempo pessoal e transpessoal.
O homem era considerado não como sujeito
pensante, mas como local do pensamento, lugar do inteligível” (De Libera, 1991:
141). Os latinos medievais teriam aprendido com Al-Kindi e Farabi que “[...] o
pensamento podia ser um progresso cotidiano, uma assimilação progressiva, dito
de outra forma, um trabalho e, em última análise, uma santificação. Os
pensadores latinos aprendiam assim a considerar o exercício do pensamento como
uma ascese, a ‘espiritualizar’ o ideal aristotélico da sabedoria contemplativa em
uma espiritualidade do trabalho intelectual. Ao aprender dos árabes em geral a
existência de uma ‘esperança filosófica’ [...], eles ascendiam à idéia de que
havia lugar na terra para uma vida bem-aventurada, uma vida do pensamento, antecipando
a visão beatífica prometida aos eleitos na pátria celeste.17
Deviam a eles assim “a idéia de que a
atividade do pensamento é também um crescimento da alma no ser, tese nova que,
proporcionando ao trabalho intelectual sua dupla dimensão de labor e de
contemplação, impunha uma redefinição do ideal da sabedoria” (De Libera, 1991: 140).
E é certo que, embora essas influências fossem adquirir um tom mais radical
entre os artistas heterodoxos, estavam também presentes entre outros
pensadores, como Alberto.
INTELECTOCRATAS
Os aristotélicos heterodoxos da
faculdade de artes de Paris sofrem censuras universitárias, as de 1277 em particular,
devido à sua pretensão de reviver um antigo ideal ético, próprio aos filósofos,
no seio da corporação universitária. Agora, a “filosofia não era mais
considerada abstrata-mente, como ‘vã curiosidade’ parasitando o espírito dos
clérigos, mas concretamente, como um conjunto articulado de decisões relativas
ao mundo, ao lugar que nele ocupava o homem e à ética daí extraída” (De Libera,
1991: 178). E os valores que integravam esse ideal ético não se opunham, necessariamente,
aos valores cristãos, mas de algum modo com eles concorriam por justificarem de
modo diverso comportamentos similares. Havia uma espécie de assimilação de
temas da moral cristã para o domínio da filosofia, dando-lhes outra
justificativa, assim como a transposição de temas filosóficos para terrenos
diferentes daquele em que eram tratados em sua origem.
Assim, por exemplo, ao dar sentido
filosófico à apologia da castidade, Siger de Brabante argumentou utilizando um
tema aristotélico: o do egoísmo virtuoso. O egoísta virtuoso, sinônimo de
filósofo, seria o que “se identifica com a parte mais nobre de si mesmo: o
intelecto, o pensamento”, uma vez que cada “homem é seu próprio intelecto”. Apenas
ele seria realmente livre e nobre, porque, ao “obedecer apenas às determinações
de seu intelecto, obedece a si mesmo”. Associada a essa concepção viria, então,
a defesa de “uma nobreza do intelecto, superior à nobreza do sangue”, concepção
que muito deve à idéia averroísta da elite filosófica.
Em meio aos aristotélicos heterodoxos da
Universidade de Paris, afirma-se um ideal “intelectocrata”, “uma elite que deve
sua dignidade não a privilégio ou condição hie-rárquica, mas a uma
superioridade intelectual” (Lohr, 1992: 91).
A idéia do egoísmo virtuoso seria também
acompanhada por outro aspecto da ética aristotélica: o da amizade virtuosa.
Para chegar à “[...] plenitude filosófica da vida individual, o homem deve ser
absolutamente ele mesmo, isto é, como vimos, “viver segundo o que há de melhor
nele”: o pensamento. Esse engajamento intelectual é a decisão filosófica por
excelência, o ato supremo de virtude. Ora, o homem não pode viver o pensamento
sem comunicação [...]. Tendo consciência de sua própria bondade, o egoísta virtuoso
tem necessidade de “participar também da consciência que seu amigo tem de sua própria
existência”. Necessita, portanto de “viver com ele”, de ‘partilhar discussões e
pensamentos’” (De Libera, 1991: 239).
Além de uma “alternativa filosófica” ao
ideal cristão da castidade, apresentava-se assim também uma “alternativa” à
caridade cristã. “A pretensão dos filósofos contemplativos a uma dignidade de
vida igual às mais elevadas virtudes da vida monástica impunha um problema
corporativo aos teólogos. [...] A idéia de uma corporação de egoístas — os
magistri artium — só podia causar embaraço à hierarquia eclesiástica. Era uma contradição
de termos, mas uma contradição operativa, minando concretamente a universidade
cristã. Ao eliminar a distância entre mendicantes, seculares e leigos, a
reivindicação dos “filósofos” apresentava um problema novo ao cristianismo: o
do intelectual em meio cristão (De Libera, 1991: 237).
A
UTOPIA UNIVERSITÁRIA
Um dos aspectos mais interessantes desse
processo foi o de que, ao fazer da Universidade o espaço em que se poderia
conduzir uma vida orientada para o ideal de atingir a contemplação intelectual,
transformavam-na em utopia. Além disso, aqueles que postulavam a exaltação da
vida filosófica transpunham para o espaço da Universidade — lugar de exercício
de seu ofício — algo que, para os primeiros formuladores do ideal da
contemplação, da sabedoria teorética, da amizade perfeita entre filósofos, só
era compatível com o domínio do ócio. A vida universitária se confunde com o
ócio de Aristóteles, pois o estudo “é um tempo para a virtude egoísta e a
amizade que ela demanda [...], considerada com os olhos de um “aristotélico”, a
universidade medieval é antes de tudo um lugar e um laço de contemplação (De
Libera, 1991: 240-241).
Na verdade, segundo essa concepção, a
atividade do pensamento, o conhecimento, não deixava de ser um trabalho, mas um
trabalho capaz de liberar, à diferença daquele que escravizaria o homem à
matéria, o trabalho servil. A relação entre sabedoria e conhecimento, entre contemplação
e trabalho, é redefinida, e os intelectuais/filósofos são membros “de uma
sociedade de homens reunidos para viver juntos uma moral, um trabalho e um
ideal”
(De Libera, 1997: 8). E a junção do
ideal filosófico da “felicidade intelectual” com a ética corporativista
transforma essa “felicidade” em profissão. É tendo em vista essa possibilidade
que fazem sentido as “interrupções de carreira”, mediante as quais alguns
mestres em artes escolhem permanecer na faculdade de artes, no que seria o
estágio preparatório para os demais cursos, apesar das dificuldades materiais
decorrentes dessa opção. Vários desses mestres “voluntariamente se eternizaram
numa situação — um ‘estado’ (status) — do qual a pobreza e a ausência de perspectivas
os devia normalmente afastar” (De Libera, 1991: 12). Chegando a fazer propaganda
da força dessa sedução, eles: “souberam lhe dar um slogan que expressava o
término esperado de uma carreira de professor e o fim desejado de uma ascese
intelectual: ibi statur, “aí permaneçamos”. Alcançada a filosofia, deve-se
manter nela; não há por que ir além do sabor (sapor) da sabedoria (sapientia)”
(De Libera, 1991: 147).
Não é surpreendente que a retomada de
concepções do pensamento grego não tenha contribuído para apagar a distância
entre trabalho manual e trabalho intelectual. O surpreendente é terem, por
outro lado, associado o caminho de busca da beatitude perfeita ao exercício de
uma profissão; a corporação universitária ser vista como o lugar em que se poderia
conduzir uma vida “definida por um privilégio realmente extraordinário: a possibilidade
de abolir institucionalmente a distância que separa o otium do negotium”. Como uma
estrutura social em que o “estudo é lazer” e “a vida pode ser inteiramente
dedicada ao prazer da dificuldade” (De Libera, 1991: 242).
Os aristotélicos heterodoxos postulam
uma concepção de nobreza que buscava distingui-la da nobreza tradicional.
Tratava-se não de uma nobreza de sangue, mas de uma nobreza adquirida por um
esforço pessoal: o “filósofo” se enobrecia por uma superioridade intelectual,
em razão da escolha por viver segundo o intelecto e pela virtude a ela correspondente,
pois “a filosofia se atesta na maneira de viver e de desejar.
Ainda que insistindo em falar dos rigores
de sua condição, os “pobres mestres e estudantes da universidade de Paris”
vivem como antigos aristocratas e cantam até os prazeres da abstinência — ou,
melhor dizendo, da abstenção — egoísta. A universidade é uma instituição de
pobreza onde se ganha a vida com dificuldades, mas é nesse lugar de miséria que
se goza a alegria da emulação e do reconhecimento, o charme da virtude” (De
Libera, 1991: 242). Tratava-se, em essência, do ideal de uma “aristocracia intelectualista
desinteressada”, deixando sua marca indelével na vida universitária.
Ainda que seja evidente que esse ideal não
impediu uma evolução no sentido de uma integração dos professores
universitários a classes privilegiadas ou de um comprometimento do ensino com
esses grupos.
REFERÊNCIAS
BIBLIOGRÁFICAS
DE
LIBERA, Alain. Penser
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Oxford, Oxford University Press, 3 v., 1936.
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