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“Gestão e Negócios Sustentáveis”, de autoria de Superdotado Álaze Gabriel.
Disponível
em http://www.gestaoenegociossustentaveis.blogspot.com.br
Autoria:
UNESCO/ONU.
INTRODUÇÃO
Perguntamos se a ciência normal (Kuhn:
1975), por um lado, e a educação genuína, (Freire: 1999) por outro, se constituem
ou não em propensões antitéticas. A motivação para este questionamento é que,
para a primeira, o cerne seria o dogma, enquanto para a segunda, seria a
crítica. Argumentamos que a superação deste difícil dilema passa, necessariamente,
pela questão da autonomia, entendida nas suas dimensões epistemológica, ética e
política. Somos conduzidos à conclusão segundo a qual a conquista da autonomia constitui
enorme desafio, pois requer radical reforma tanto do pensamento quanto de
atitudes éticas.
Em trabalho anterior (Bastos Filho:
2000a), discutimos a crítica popperiana (Popper: 1979) ao pensamento de Kuhn e
propusemos uma solução conciliatória sobre alguns aspectos do desenvolvimento
da ciência, que tanto aceitasse quanto recusasse, parcialmente, as duas teses.
Em outras palavras, tratava-se de uma solução conciliatória, na qual se reconhecia,
em ambas, apenas parte da razão.
No presente trabalho, levantamos uma
série de outros questionamentos, entre os quais, e principalmente, o que constitui
a pergunta do título. De fato, se concebermos a ciência normal kuhniana como
aquela praticada por uma comunidade que se atém a um paradigma que fornece
soluções exemplares de problemas do tipo quebra-cabeça, essa comunidade se
concentrará dogmaticamente em problemas que somente a falta de destreza de seus
praticantes impediria de que alcançassem resultados que contribuíssem para o acréscimo
do conhecimento (normal, é claro). Então, seria forçoso concluir que, para a
ciência normal kuhniana, tal como muito bem colocou Lakatos, crítica seria
maldição (Lakatos: 1979).
Por outro lado, se tomarmos o conjunto
das tendências expressas pela LDB (Lei de Diretrizes e Bases da Educação), pelos
PCN (Parâmetros Curriculares Nacionais) e por um autor emblemático como Paulo
Freire, podemos resumir que, grosso modo, o que se tem em mente é uma educação
crítica, uma educação cidadã, em que as pessoas não sejam simples-mente
decoradoras de fórmulas matemáticas, nem meras repetidoras de cronologia sem a
história correspondente, nem reprodutoras de conhecimentos sem o suficiente conhecimento
de causa. Importa que sejam pessoas críticas, que saibam tomar iniciativa e
propor soluções perante circunstâncias novas e diferentes daquelas às quais se
haviam habituados. Enfim, que sejam pessoas para as quais a maldição não seria
mais a crítica e sim o dogma.
O conflito, então, está posto. A ciência
normal se apegaria ao dogma, ou seja, à aderência estrita e praticamente exclusiva
ao paradigma dominante. A educação, por outro lado, se for genuína e não mero
adestramento nem treina-mento, tem de ser necessariamente crítica.
Obviamente, alguém que, no seu processo
educacional, tenha sofrido ambas as influências, ou seja, por um lado, uma
concepção muito radical de ciência normal meramente como operação de limpeza,
e, por outro, uma concepção de abertura e de estímulo à crítica, é forçoso
concluir que esse indivíduo vive um grande conflito. Se for muito prático e pragmático,
poderá optar por uma inserção na ciência normal sem grande drama de
consciência. Mas se tiver uma vocação transversal e, além disso, considerar a
crítica como o apanágio de qualquer atividade intelectual (ainda que re-conheça
que a divisão rigorosa de trabalho é uma espécie de mal necessário para a eficiência
do processo de acumulação), então, sem dúvida, o conflito será agudo.
No curso do presente trabalho,
argumentamos que a solução do conflito ciência normal versus educação passa, necessariamente,
pela questão da autonomia. Trataremos desta importante questão segundo as
dimensões epistemológica, ética e política. Conflitos de saberes têm sido
examinados criticamente por diversos autores e sob diversos aspectos.
Citaríamos duas abordagens recentes: a primeira delas está exposta num artigo
recente (Mamone Capria: 1999), que trata do conflito de saberes entre médicos e
pacientes, o qual se manifesta, por exemplo, na solicitação a esses últimos
termos de consentimento livre e esclarecido em função de grave enfermidade; a
segunda, (Danhoni Neves: 1999) é exposta em um livro que traz uma crítica
afiada ao ensino que apresenta os conteúdos científicos como destituídos de
história e artificialmente linearizados, procedimento esse que leva os estudantes
a uma gravíssima distorção da real prática histórica da ciência.
O conflito se revela com todas as
letras, pois é necessário manifestar o que realmente desejamos: (1) se queremos
uma linearização extrema que, com o pretexto didático de simplificar, produz os
efeitos negativos de desconsiderar a história, fazer apologia triunfalista da genialidade
e restringir severamente o pensamento, apostando, assim, apenas na lógica da
divisão de trabalho, a qual prepara mais rapidamente os estudantes para uma
prática trivial de ciência normal; (2) ou, em lugar disso, se queremos a educação
realmente genuína, que prepara não apenas o cidadão, mas o ser humano integral.
No entanto, não queremos reduzir as
possibilidades eventuais de soluções do conflito apenas às duas alternativas
acima expostas. No caso do ensino de ciências, somos cônscios da possibilidade
de uma gama de soluções intermediárias, nas quais o movimento dialético
conflito/conciliação esteja presente. Em outras palavras, há muitas nuances,
consubstanciadas pelas diferentes doses de comparecimento concomitante das
alternativas (1) e (2).
O presente trabalho tem como objetivo
tratar de alguns aspectos desse importante dilema. Temos consciência da abrangência
e das dificuldades suscitadas. Perguntaríamos, então, se seria possível e, em
caso afirmativo, em que medida uma solução conciliatória de um dilema tão
dilacerador para um espírito cognoscente.
ASPECTOS
DO CONFLITO
Comecemos a colocação de um dos aspectos
do conflito entre as concepções de Kuhn e Popper com uma bela citação de
Lakatos: “O seu [de Kuhn] principal problema também é a revolução científica.
Mas ao passo que, de acordo com Popper, a ciência é ‘revolução permanente’ e a
crítica é o cerne do empreendimento científico, de acordo com Kuhn a revolução
é excepcional e, na verdade, extracientífica, e a crítica em épocas ‘normais’,
é maldição” (Lakatos, 1979: 111).
Como se pode facilmente notar daquilo
que acima foi argumentado, parece haver entre Kuhn e Popper um conflito, de
alguma maneira, análogo ao que existe entre aquela visão radical de ciência normal
e a educação. Mas a situação é muito mais complexa do que sonha a nossa vã
filosofia, pois se seguirmos ao pé da letra o relato de Kuhn para o desenvolvimento
da ciência, como poderíamos acreditar que os cientistas praticantes da ciência
normal, acostumados ao dogma e à aderência restrita ao paradigma dominante, fossem
capazes de, durante a crise causada por uma série de anomalias de que o
paradigma dominante não pode dar conta, passar a exercer a crítica?
Em outras palavras, como poderia alguém
(e até mesmo uma comunidade) sempre acostumado a trabalhar com dogmas passar,
de uma hora para outra, a exercer a crítica? Popper reconhece que, infelizmente,
a ciência normal de Kuhn existe, mas deve ser combatida. Numa interessante
passagem, Popper escreve: “A ciência ‘normal’, no sentido de Kuhn, existe. É a
atividade do profissional não-revolucionário, ou melhor, não muito crítico: do
estudioso da ciência que aceita o dogma dominante do dia; que não deseja
contestá-lo; e que só aceita uma nova teoria revolucionária quando quase toda a
gente está pronta para aceitá-la — quando ela passa a estar na moda, como uma
candidatura antecipadamente vitoriosa a que todos, ou quase todos, aderem.
Resistir a uma nova moda exige talvez tanta coragem quanto criar uma. Vocês talvez
digam que, ao descrever desta maneira a ciência ‘normal’ de Kuhn, eu o estou
criticando implícita e sub-repticiamente.
Afiançarei, portanto, mais uma vez que o
que Kuhn descreveu existe, e precisa ser levado em consideração pelos
historiadores da ciência. O fato de tratar-se de um fenômeno de que não gosto (porque
o considero perigoso para a ciência), ao passo que Kuhn, aparentemente, não
desgosta dele (porque o considera ‘normal’) é outro assunto; assunto, aliás,
muitíssimo importante” [O grifo é nosso] (Popper, 1979: 64-65).
A citação continua com uma série de
críticas importantes. Cremos que é de bom alvitre ainda citar algumas passagens
instrutivas para os nossos propósitos neste trabalho.
Popper continua a sua crítica e escreve:
“A meu ver, o cientista ‘normal’ tal como Kuhn o descreve, é uma pessoa da qual
devemos ter pena. [...] O cientista ‘normal’, a meu juízo, foi um mal ensinado.
Acredito, e muita gente acredita como eu, que todo o ensino de nível universitário
(e se possível de nível inferior) devia consistir em educar e estimular o aluno
a utilizar o pensamento crítico. O cientista “normal’, descrito por Kuhn, foi
mal ensinado. Foi ensinado com espírito dogmático: é uma vítima da doutrinação.
Aprendeu uma técnica que se pode aplicar sem que seja preciso perguntar a razão
pela qual pode ser aplicada (sobretudo na mecânica quântica). [...] Para
usarmos a ex-pressão de Kuhn, ele se contenta em resolver ‘enigmas’. A escolha
desse termo parece indicar que Kuhn deseja destacar que não é um problema
realmente fundamental o que o cientista ‘normal’ está preparado para enfrentar;
é, antes, um problema de rotina, um problema de aplicação do que se aprendeu”
(Popper, 1979: 65).
As duas citações imediatamente acima são
bastante claras, e a leitura que delas podemos fazer é quase direta. Passemos,
pois, a tecer algumas considerações sobre a citação anterior de Lakatos. O que
ele tem em mente, quando interpreta a concepção de Popper sobre o
desenvolvimento da ciência como uma tal do tipo revolução permanente, é que
essa permanência se baseia na necessidade de que sempre surjam, no processo do
fazer ciência, conjecturas ousadas e audazes, necessariamente acompanhadas de
refutações austeras (ou tentativas de refutações), e tudo isso em nome de uma
rigorosa honestidade intelectual na qual nenhum compromisso deve ser mantido a
não ser aquele da busca austera e incessante no caminho da verdade. Segundo
Popper, marxistas e psicanalistas ao tentarem, por meio de evasivas ad hoc,
salvar as suas teorias, mostraram não possuir a suficiente austeridade e, por conseguinte,
isso denotaria o caráter não-científico de seus postulados. Popper considera
que, para psicanalistas e marxistas, os compromissos menores e pouco nobres se
sobrepujaram em relação ao único compromisso aceitável, que é o da busca
austera e incessante da verdade, ainda que nunca se possa saber ao certo se
essa foi ou não alcançada. Daí o caráter eternamente conjectural das nossas
teorias. Assim, Lakatos inferiu que, para Popper, compromisso seria crime.
Não é preciso dizer que uma opinião
assim tão radical suscitou um grande número de críticas, pois com tal relato a atividade
científica (que evidentemente não é aquela dos cientistas mal-ensinados da
ciência normal kuhniana) pode ser quase identificada com a prática ou, pelo
menos, com uma das possíveis práticas, a da honestidade intelectual.
Em um livro recentemente publicado
(Bastos Filho: 1999a), analisamos o problema sob um de seus possíveis aspectos.
Na nossa opinião, esse tipo de “falseacionismo” (critério de refutabilidade) —
o “falseacionismo” ingênuo — não é aplicável, pelo menos em larga escala, pois
há as irremovíveis vicissitudes humanas que sempre levam o cientista a
acreditar no aspecto eternamente válido de suas caras teorias; isso tem lugar por
razões tanto internas quanto externas, principalmente quando a exposição, de
peito aberto, à crítica (rigorosa austeridade das refutações) seria uma
tendência oposta à necessária competição no seio do establishment, a fim de que
o cientista não se deixe sucumbir.
Mas voltemos à questão segundo a qual,
uma vez admitido o relato kuhniano, como seria possível a uma comunidade
acostumada com o dogma passar a exercer a crítica, em vista do surgimento de um
número insuportavelmente grande de anomalias. Ora, Popper reconhece que a
ciência normal existe e que ela é praticada por gente dogmática, mal-ensinada,
em relação à qual devemos ter pena devido à sua enorme pobreza de espírito.
Trata-se, outrossim, de um fenômeno tanto perigoso quanto deprimente. No entanto,
e felizmente, não existe apenas esse tipo de gente. Por isso,
Popper escreve: “Afirmo que entre o
‘cientista normal’ de Kuhn e o seu ‘cientista extraordinário’ há muitas
gradações e é preciso que haja. Tome-se Boltzmann, por exemplo; haverá poucos
cientistas maiores do que ele. Dificilmente, porém, se pode dizer que sua
grandeza consiste em haver ele preparado uma revolução importante porque era,
em extensão considerável, seguidor de Maxwell. Mas estava tão longe de ser um
‘cientista normal’ quanto se pode estar; lutador corajoso, resistiu à moda
imperante de seu tempo — moda que, a propósito, só imperou no continente e teve
pouco seguidores, naquela época, na Inglaterra.” (Popper, 1979: 67)
Popper critica a divisão kuhniana entre
“ciência normal” (dogmática) e “ciência extraordinária” (crítica) e aduz o
exemplo emblemático de Boltzmann, que não se adapta-ria a uma divisão estrita
entre essas duas categorias kuhnianas. Mais adiante, Popper, argumenta que o
relato “kuhniano” de períodos normais regidos por um paradigma, seguido de
outro de revoluções excepcionais, se adaptaria à astronomia mas não à evolução
da teoria da matéria nem à evolução da teoria das ciências biológicas a partir
de Darwin e de Pasteur. Argumenta, ainda, Popper, e como um contra-exemplo ao
relato de Kuhn sobre o desenvolvimento da ciência, que desde a antigüidade
coexistiram sempre três tipos de teorias dominantes, que historicamente
competiram entre si, a saber, as teorias atômicas, as teorias da continuidade
e, ainda, as teorias que tentavam combinar e conciliar as teorias dos dois
primeiros tipos.
Quanto ao aspecto do dogmatismo, Kuhn e
Popper têm diferentes versões a respeito do mérito da questão. Enquanto, para
Kuhn, dogma é apanágio da ciência normal, pois somente assim os seus praticantes
se ateriam com a devida fé à disciplina paradigmática em prol do acúmulo do
conhecimento normal, para Popper, embora a atividade científica genuína seja
necessariamente crítica, devemos nos ater a uma pequena dose de dogmatismo, a
fim de que não venhamos a nos entregar com demasiada facilidade aos argumentos
daqueles que defendem teorias rivais em relação às nossas: “Se nos sujeitarmos à
crítica com demasiada facilidade, nunca descobriremos onde está a verdadeira
força das nossas teorias”.
Vemos, portanto que, enquanto para Kuhn,
o dogma é o cerne da ciência normal, para Popper é necessária uma pequena dose
de dogma, apenas como um mínimo de convicção necessária para o enfrentamento.
Neste estágio, é interessante que o nosso estudo não se restrinja ao debate apenas
no viés dos autores acima. É pois possível identificar, antes de Kuhn,
pareceres muito críticos sobre a comunidade científica e suas práticas. O
parecer do filósofo espanhol Ortega y Gasset, o qual chamou bastante a atenção
do físico Schrödinger, nos parece relevante no contexto da presente discussão.
SOBRE
UM PARECER DE ORTEGA Y GASSET
Algumas décadas antes de Kuhn, o
filósofo espanhol Ortega y Gasset — o filósofo da razão vital — escreveu um livro
intitulado La rebelión de las masas, no qual encontra-se um primeiro capítulo
de título sugestivo La barbarie Del “especialismo”, cujo conteúdo revela-se
muito crítico em relação a uma atitude alienante que colocaria em perigo a sobrevivência
da verdadeira civilização. Vejamos, pois, as suas palavras; Ortega descreve um
“tipo de cientista sem precedentes na história”:
“Ele é uma pessoa que, de todas as
coisas que alguém verdadeiramente educado deve saber, é familiar apenas com uma
ciência particular e mesmo assim, desta ciência, apenas uma pequena parte é
conhecida por ele, a qual é a que ele próprio se encontra pesquisando. Ele
chega ao ponto de proclamar como virtude o fato de não levar em conta tudo
aquilo que se encontra fora do estreito domínio por ele cultivado, e acusa como
diletantismo a curiosidade que tem por objeto a síntese de todo o conhecimento.
Isso chega a passar a idéia de que ele,
isolado na estreiteza de seu campo de visão, real-mente é bem-sucedido na atividade
de descobrir fatos novos e promover sua ciência (a qual ele dificilmente sabe)
na direção do pensamento humano integrado — o qual ele próprio ignora com total
determinação. — Como algo assim foi possível e como isso continua a ser
possível? Nós deveremos sublinhar com ênfase o inusitado deste irrecusável
fato: a ciência experimental tem progredido, em considerável extensão, pelo
trabalho de pessoas extraordinariamente me-díocres e, até mesmo, abaixo da
mediocridade” (Ortega y Gasset apud Schrödinger, 1996: 110-111).
Vejamos algumas considerações sobre esta
passagem de Ortega y Gasset. Ora, tendo em vista que La rebelión de las masas
foi publicado pela primeira vez em 1930, é de se supor que o cientista a que
Ortega se refere seja o daquela época. No entanto, tendo em vista o exponencial
crescimento numérico das comunidades científicas dos países tanto centrais
quanto periféricos, a situação parece ter se agravado sobremaneira,
principalmente no período posterior ao da segunda guerra mundial. A
proliferação, até certo ponto desenfreada, de comunidades científicas em todas
as partes do mundo (tanto centrais quanto periféricas) nos coloca diante de
severas perplexidades, principalmente se compararmos a situação de então com a
situação do século XVII, e mesmo com a situação do século XIX, em que o número
de cientistas era significativamente menor.
Cremos que a democratização da atividade
científica seja uma boa coisa, mas não a sua banalização, no sentido de uma
radical degradação do pensamento. Assistimos perplexos a duas propensões
antitéticas: de um lado, uma proliferação diversificadora de comunidades
científicas, o que é uma coisa salutar, pois enriquece e complexifica os
problemas e com eles o próprio pensamento; mas, de outro lado, assistimos a um
fechamento e a uma banalização de procedimentos e atitudes, que parecem não
caminhar para um bom termo, na medida em que contribuem para que partes e subpartes
do saber não se comuniquem entre si. O texto de Ortega suscita problemas muito
importantes como:
•Seriam os cientistas estreitíssimos,
tais como os descritos por Ortega, aqueles que integrariam o conhecimento?
•Em caso afirmativo, como isso seria
possível?
1. O texto em português, que constitui a
tradução desta citação a partir do inglês, é de nossa responsabilidade.
•Seriam, pelo contrário, os cientistas
extraordinários aqueles que o fariam, com base na acumulação legada pelos
cientistas estreitos?
•Não seriam os cientistas
extraordinários capazes de superar a mera acumulação, realizar a crítica e dar
o salto de qualidade?
•Ou seria, ainda, uma “mão invisível”
ordenadora, tal como a tão persuadida “mão invisível” do mercado dos
neoliberais?
Claro está que estas questões suscitam
os problemas das características sobre o desenvolvimento da ciência, ou seja,
remetem para, entre outros, os estudos de história e de filosofia da ciência.
Em alguma medida, essa tarefa continuará a ser tratada nas próximas seções.
DAS
GRADAÇÕES ENTRE O NORMAL E O EXTRAORDINÁRIO
Admitamos, muito provisória e meramente,
a título de exercício de reflexão, a fórmula supersimplificadora e alta-mente
reducionista: D+ C= 1 em que D denota dogma e C denota crítica. Uma adoção desse
tipo parte do pressuposto de que dogma e crítica sejam categorias perfeitamente
definíveis e identificáveis, tais como o são cara e coroa numa moeda. Para
moedas não viciadas, as possibilidades são igualmente prováveis e, assim, a probabilidade
“a priori” de que, em uma dada jogada, venhamos a obter a possibilidade cara é
de ˚, ou seja, de 50%, que é a mesma probabilidade “a priori” de que venhamos
obter, em uma dada jogada, a possibilidade coroa.
A probabilidade “a priori” de que
venhamos, numa dada jogada, obter indistintamente cara ou coroa é de ˚ + ˚ = 1,
ou seja, de 100%, uma vez que todo o universo de possibilidades se encontra
contemplado. Aqui, naturalmente, não estamos considerando como integrante desse
universo a hipótese remotíssima de, numa dada jogada, a moeda cair em pé. Evidentemente,
no caso da fórmula considerada, as duas “possibilidades” não são, necessariamente,
igualmente prováveis. Em outras palavras, há infinitos pares de valores {D, C}
obedecendo à fórmula. Aqui, 0 ≤ D ≤ 1 e 0 ≤ C ≤ 1. No caso de nossa fórmula
acima, D e C não são categorias fáceis de se discernir no mesmo nível em que
podemos fazer para cara e coroa, logo o pressuposto em que a fórmula se baseia já
se encontra em dificuldades; mas vamos esquecer, por enquanto, essa debilidade.
Suponhamos grosseiramente que a
‘probabilidade’ de uma certa atitude científica, por exemplo, obedeça à fórmula
acima. Se {D= 0,01 e C= 0,99} (caso I), teremos o caso de alta probabilidade de
atitude crítica e, por conseguinte, de baixa probabilidade de atitude dogmática.
Se {D = 0,99 e C = 0,01} (caso II), teremos, pelo contrário, uma alta
probabilidade de atitude dogmática e, conseqüentemente, uma baixa probabilidade
de atitude crítica. Se {D = 0,50 e C = 0,50 } (caso III), teremos iguais probabilidades
de atitude crítica e de atitude dogmática. Além dos três casos listados acima,
teremos uma gama infinita de possibilidades, tais como {D = 0,77 e C = 0,23},
{D = 0,14 e C = 0,86} etc.
Ora, se tentarmos, grosso modo,
interpretar essa gama infinita de possibilidades como as possíveis gradações entre
o normal e o extraordinário, diríamos que, a despeito dessa enorme
simplificação que encontra debilidades de origem, o caso I seria mais afeito ao
cientista extraordinário e o caso II seria mais afeito ao cientista normal de
baixa qualidade. Dir-se-ia, ainda seguindo esta lógica tosca, que o caso III
seria o de um cientista, talvez, normal, de qualidade intermediária, o qual
conjugaria, em iguais doses, crítica e dogma. Ora, é fácil de ver que um
esquema como o descrito acima não pode se sustentar. Vejamos por que. Tomemos o
caso III. Ora, em lugar de classificarmos um cientista deste perfil como um
cientista normal, de qualidade razoável, poderíamos dizer que este perfil
também se adapta a um cientista extraordinário, que tanto reúna doses
relativamente altas de dogmatismo (alta convicção de seu programa de pesquisa
científico a despeito de percalços), como doses relativamente altas de crítica.
A questão é que, em uma fórmula supersimplificadora como a que estamos
considerando, não entram formidáveis ingredientes, como a imaginação e a
criatividade. Decerto que a crítica ajuda tanto a imaginação quanto a
criatividade; no entanto, crítica apenas não basta. Para a atividade
científica, notadamente para aquela de boa qualidade, talvez imaginação e
criatividade sejam mais importantes do que crítica, o que não implica dizer que
o papel da crítica não seja fundamental.
Mas vejamos o caso I. À primeira vista,
tal como acima nos referimos, este caso se adaptaria a um cientista extraordinário,
dado o alto valor para C(C = 0,99). Mas novamente aqui nos encontramos em uma
situação ambígua, pois este caso pode se aplicar a um cientista “normal” (não
tão kuhniano assim) que seria dotado de alta capacidade crítica e de baixíssima
capacidade dogmática, mas que, por limitações pessoais de imaginação e de
criatividade, não pudesse dar o salto que caracterizaria o trabalho
extraordinário.
A discussão, até aqui, levou-nos ao
resultado segundo o qual as variáveis imaginação e criatividade devem, necessariamente,
ser levadas em conta. Agora, vamos nos concentrar na seguinte questão:
Se, no contexto de uma fórmula super
simplificadoracomo a escrita acima, já nos deparamos com a dificuldade de
identificar uma linha demarcatória clara entre dogma e crítica, o que diríamos
se introduzíssemos imaginação e criatividade no cômputo da “equação”? Tudo
indica que esse caminho não nos vai levar a muito longe. Mas essa discussão
serviu para mostrar que as diversas gradações que, segundo Popper, devem
existir entre os cientistas normal e extraordinário de Kuhn, precisam ser vistas
com maior abrangência, fazendo entrar em consideração categorias fundamentais,
como imaginação e criatividade.
Outro argumento em prol da existência
dessa gradação é encontrada nos próprios perfis dos membros que compõem a
comunidade científica. De fato, no seio da comunidade científica são
encontrados cientistas de praticamente todos os perfis. Vejamos alguns deles: Há
aqueles que, por decisão programática de carreira, concentram-se no uso exclusivo
de técnicas experimentais ou teóricas. No curso de suas respectivas atividades,
jamais aparecem questionamentos sobre as bases conceituais em que essas
técnicas repousam, nem algum princípio subjacente a essas técnicas. Com maior
razão, cientistas desse perfil, com grande probabilidade, a não ser em certos
casos cada vez mais raros de temperamento pessoal cordial, envidarão esforços
que redundem em ações hostis em relação àqueles que se interessem por questões
políticas, educacionais, históricas e epistemológicas. Cientistas desse perfil produzem
um grande número de papers em série e se orgulham de maneira apologética de
suas respectivas especializações.
Há um segundo tipo de cientista, cujo
perfil é intermediário: admite a crítica e também é suceptível de considerar
questões mais abrangentes, transversais, multidisciplinares e epistemológicas.
No entanto, todo esse tipo de atividade é relegada ao estatuto de hobby,
passatempo, ou então é deixada para o período que sucederá a aposentadoria, no
qual as pressões de carreira terão se diluído sobre-maneira. O cientista deste
perfil também se concentra, por decisão programática de carreira, em resultados
superespecializados, mas a qualidade de seu trabalho está modulada por alguma
dose de crítica, o que o distingue do cientista de perfil, que apresenta comportamento
absoluta e rigorosamente acrítico.
Há um terceiro tipo de cientista que
combina crítica aguda e altamente qualificada (às vezes até heresia de boa
qualidade) com interesses de carreira, sendo esta, via de regra, profundamente
conturbada por conflitos de ordens diversas. Ainda que o talento de um
cientista desse perfil possa variar muitíssimo, um valor moral intrínseco,
caracterizado por uma coragem singular, o distinguirá dos demais descritos
acima. Embora o valor intelectual de um cientista desse perfil seja muito
variado, o que garantirá o seu sucesso não se reduz simplesmente ao seu estrito
mérito acadêmico nem à força de seus argumentos. As alianças e correlações
políticas poderão lhe ser favoráveis, contrárias ou, ainda, equilibradas, e
isso terá papel fundamental na consecução de seus objetivos.
Há o cientista criterioso (crítico), que
trabalha seriamente em questões bem mais restritas à sua ciência específica e
que tem abertura para questões de outro viés, mas que, por decisão programática
de carreira, não se ocupa de questões epistemológicas. É possível encontrar
indivíduos deste perfil com simpatias veladas ou, até mesmo, um pouco mais do
que simplesmente discretas, por questões epistemológicas. É possível, ainda,
encontrar nesse perfil atitudes não tão simpáticas em relação aos colegas que
adotaram tratar seriamente dos problemas filosóficos suscitados pela ciência,
mas as eventuais hostilidades em relação aos cientistas/filósofos são, via de
regra, muito menos in-tensas do que aquelas dirigida aos cientistas/filósofos
pelos cientistas de perfil. Esta constatação é relevante, mashá exceções.
Há o cientista extraordinário. Criativo,
imaginativo, revolucionário. Lança novas luzes e contribui decisiva-mente para
o conhecimento. É uma categoria muitíssimo mais rara, mas de grande
importância. Poderíamos, ainda, listar uma série de outros perfis que combinem
valor intelectual, correlação política, penetração e participação nos órgãos
financiadores, fator de sinergia ao agrupar quadros e formar pessoas para o
ensino e para a pesquisa, lideranças de vários tipos, fator desagregador, competição
de programas de pesquisa, luta hegemônica, etc.
No entanto, os perfis já listados até
então nos satisfazem, no sentido de mostrar que essas gradações, de fato,
necessariamente existem. Ademais, a situação ainda se torna mais complexa
quando nos lembramos de que há diversas comunidades científicas de diferentes
vocações, interesses e teores que têm padrões muito específicos de avaliação do
prestígio acadêmico. A instituição da ciência bem como a própria comunidade que
a produz constituem-se em fenômenos por demais complexos, os quais não parecem
ser dóceis a esquematizações supersimplificadoras. O surgimento de nomes
seminais e extraordinários é fruto de uma confluência de fatores, e o termo,
talvez, mais adequado para expressar esta confluência seja complexidade.
ALGUNS
ASPECTOS DA QUESTÃO DA AUTONOMIA
Do que foi discutido na seção passada,
tivemos uma ideia bastante panorâmica de alguns perfis possíveis de cientistas.
Embora tenhamos traçado um quadro muito incompleto e esquemático, ficou claro
que, daquilo que pudemos depreender da descrição sobre possíveis gradações de
perfis científicos, não podemos aceitar que o dogma tenha de ser
necessariamente apanágio no seio do establishment científico. No entanto, Kuhn
não deixa de ter parte da razão. De fato, os cientistas de perfil da seção
passada constituem o grupo que mais se adapta à categoria de ciência normal de baixa
qualidade. Esse grupo é numerosíssimo, talvez a grande maioria dos cientistas.
Não obstante o fato de que esses cientistas sejam “necessários” numa lógica
perversa de mera acumulação e trabalho duro, eles, sem dúvida, constituem um
perigo para a atividade racional sadia, no sentido de que, independentemente,
apontaram e deram ênfase intelectuais como Ortega y Gasset e Popper.
Gostaríamos, agora, de deslocar o foco
de nossa discussão para o problema, necessariamente complexo, da autonomia. A
título de mote, alguém uma vez nos disse que a estrutura da instituição
científica hodierna, bem como de várias outras instâncias congêneres, é fortemente
embasada numa rígida hierarquia. Essa pessoa descreveu essa hierarquia em
termos bem-humorados, e até mesmo em forma anedótica, da seguinte maneira: os
grandes chefes são aqueles que “dão esporro” nos chefes; os chefes são aqueles
que “dão esporro” nos chefes menores; os chefes menores são aqueles que “dão
esporro” nos pós-doutores, que, por suavez, “dão esporro” nos doutores, que por
seu turno “dão esporro” nos doutorandos, os quais “dão esporro” nos mestres,
que “dão esporro” nos mestrandos, que por sua vez “dão esporro” nos bacharéis,
que “dão esporro” nos licenciados ... e assim por diante. Note a ideologia
sujacente do establishment: a primazia conferida à pesquisa em relação ao ensino,
a qual será contextualizada no final da seção 6.
Este relato bem-humorado combina
muitíssimo bem com uma charge que tivemos oportunidade de ver afixada em um
mural de uma importante universidade brasileira. Tratava-se de alguns poucos
búfalos que corriam desenfreadamente, seguidos cegamente por um número maior, seguidos
cegamente por um número ainda mais numeroso, e assim sucessivamente. Os búfalos
do pequeníssimo grupo da linha de frente perguntavam entre si: Será que eles sabem
que nós não temos a mínima idéia de para onde vamos?” A turma da linha de
frente era indicada na charge como “orientadores”, o grupo intermediário como
“doutorandos” e o grupo majoritário como “mestrandos”.
Se levarmos em conta tais descrições,
ainda que anedóticas, mas nem por isso desprezíveis, diríamos que a estrutura
hierárquica a que estão submetidas as comunidades científicas de diferentes
teores e índoles é tal que os critérios de liderança subjacentes, e que aqui
transparecem com nitidez, são, em considerável medida, profundamente políticos
e, de uma forma específica, de política consubstanciada pela capacidade de “dar
esporro” e de coagir e compelir subordinados a fim de que sejam asseclas
empedernidos e sequazes cegos. A propósito, não convém esquecer de que a política
trata de poderes e de suas correlações. Em outras palavras, o critério de
liderança política (capacidade de “dar esporro”) suplantaria a capacidade
intelectual. Evidente-mente, a expressão “dar esporro” deve ser encarada metaforicamente,
mesmo porque se assim não fosse pessoas dignas e dotadas de auto-estima e que
não queiram nem dar nem levar esporro de quem quer que seja já estariam definitivamente
inaptas para a prática da ciência, pelo menos dentro de sua
institucionalização. Tudo isso é especialmente instrutivo para mostrar que uma
grande confluência de fatores de diversos teores, e não apenas o mérito
científico restrito, entram no cômputo desta complexa malha que definirá as
lideranças e a estrutura hierárquica dentro de uma dada comunidade científica.
No intuito de ilustrar a questão com o
exemplo de um cientista extraordinário, tão extraordinário quanto os melhores
cientistas puderam ser, citaríamos Einstein. Vejamos se Einstein pode ser visto
como um grande chefe em um perfil de liderança que seja, a um só tempo,
científico e político. David Lindley emitiu a esse respeito o seguinte parecer:
“Em virtude de seus interesses terem
divergido largamente da corrente principal da física, Einstein não gerou uma
linha de seguidores intelectuais. Ele é reverenciado, mas diferentemente de
Niels Bohr, Wolfgang Pauli, Werner Heisenberg e outros fundadores da física do
século XX, ele nunca foi uma figura de orientador para pesquisadores de uma
nova geração” (Lindley, 1993: 3-4).
Isso combina com um parecer do próprio
Einstein. A despeito da grande e merecida admiração que praticamente todas as
pessoas sensatas tinham por ele, e da justa reverência que lhe prestavam,
Einstein afirmou: “Aqui em
Parte da marginalização sofrida por
Einstein, por mais paradoxal que este termo soe aos menos avisados, deveu-se à
sua crítica afiada à Escola de Copenhagen (Selleri: 1990). Numa carta escrita
no dia 10 de abril de 1938 a seu amigo Solovine, Einstein critica severamente a
atitude acrítica (dogmática) de grande parte da comunidade científica, a qual,
a fim de estar sempre na moda, engoliria as maiores barbaridades. Em relação à
atitude modista daqueles que aceitaram dogmaticamente coisas como a “dissolução
da realidade”, (Bastos Filho: 1999b), Einstein chegou a compará-los com
cavalos. Vejamos, a propósito, o texto de Einstein:
“A necessidade de conceber a natureza
como realidade objetiva era tida como um preconceito obsoleto, enquanto a recusa
de tal necessidade era declarada virtude pelos teóricos dos quanta. Os homens
se mostravam mais sucetíveis de serem influenciados do que cavalos, e cada
época é dominada por uma moda, resultando disso que muitos não se dão conta do
tirano que os domina” (Einstein, 1993: 85).
É exatamente contra uma tirania parecida
que se manifestaram Pascal (Pascal, 1988: 123-124) e Kant (Kant apud Popper, 1982:
204-205). Pascal, quando argumentou que a dignidade do homem reside no
pensamento, e Kant, quando interpretou o espírito do Iluminismo como aquele do Sapere
Aude. Kant (Kant apud Popper, 1982: 209) foi ainda mais longe, quando
reivindicou a necessidade da autonomia até em uma situação extrema (Kant
praticou aqui um exercício de ficção para levar adiante o seu raciocínio) em que
o próprio Deus, em pessoa, aparecesse; ainda assim, segundo Kant, isso não
dispensaria a quem quer que seja da decisão livre e autônoma (sentido kantiano)
e digna (sentido pascaliano). Em colaboração com Erinalva Medeiros (Medeiros et
al., 1999), mostramos tanto esses quanto outros aspectos da autonomia,
inclusive aquele segundo o qual tudo isso não pode se reduzir a decisões puramente
egocêntricas, pois o homem é livre e autônomo na medida em que interage e se
solidariza com os outros e, por conseguinte, a autonomia somente pode ser vista
nessa interação.
A autonomia constitui-se numa importante
categoria conceitual e tem de ser vista em conjunto com uma participação
solidária, com a liberdade de expressão, com o exercício da auto-estima, com a
educação e com a ética. A autonomia é um requisito ético fundamental para quem
quer que seja: o professor, o pesquisador, o cidadão, a esposa, o esposo, os
filhos..., etc. De outra maneira, crítica e liberdade seriam termos sem
sentido.
Argumentando nesta linha, Paulo Freire
escreveu o livro Pedagogia da autonomia com o subtítulo Saberes necessários à
prática educativa. No capítulo 2, intitulado Ensinar não é transferir
conhecimento, Freire escreve: “Saber que ensinar não é transferir conhecimento,
mas criar as possibilidades para a sua própria produção ou a sua construção.
Quando entro em uma sala de aula, devo estar sendo um ser aberto a indagações,
à curiosidade, às perguntas dos alunos, a suas inibições; um ser crítico e
inquiridor, inquieto em face da tarefa que tenho — a de ensinar e não a de
trans-ferir conhecimento” (Freire, 1999: 52).
O que Freire pretendeu ressaltar com
isso é que a prática do ensinar jamais poderá ser reduzida a uma mera transferência
similar a de um registro de água que pode ser aberto ou fechado a qualquer
tempo. Essa crítica se assemelha àquela que é feita aos empiristas
empedernidos, que reduzem o conhecimento às impressões registradas em uma tabula
rasa. O ensino autêntico requer concepções de mundo, requer idéias tanto a
priori quanto a posteriori, requer respeito mútuo, liberdade de expressão,
preservação e cultivo da auto-estima de todos os envolvidos no processo
educacional e princípios éticos que rejam a autonomia de cada um e de todo o
grupo envolvido.
Na seção 2.3 do capítulo 2, Freire
escreve: “O respeito à autonomia e à dignidade de cada um é um imperativo ético
e não um favor que podemos ou não conceder uns aos outros” (Freire, 1999: 66). E,
mais adiante, Freire escreve: “O professor que desrespeita a curiosidade do
educando, o seu gosto estético, a sua inquietude, a sua linguagem, mais precisamente,
a sua sintaxe e a sua prosódia; o professor que ironiza o aluno, que o
minimiza, que manda que “ele se ponha em seu lugar” ao mais tênue sinal de
rebeldia legítima, tanto quanto o professor que se exime do cumprimento de seu
dever de propor limites à liberdade do aluno, que se furta ao dever de ensinar,
de estar respeitosamente presente à experiência formadora do educando,
transgride os princípios fundamentais éticos de nossa existência” (Freire,
1999: 66).
Independentemente de a qual ensino
Freire tenha se referido (superior, médio ou primário), repare que tudo isso contrasta
flagrantemente com a camisa-de-força que restringe gravemente a concepção de
mundo do cientista normal kuhniano. E, mais uma vez, o conflito se manifesta
com todas as letras.
ASPECTOS
ÉTICOS E POLÍTICOS DA QUESTÃO DA AUTONOMIA
Poucas evidências empíricas são tão
consensuais quanto as discriminações que o ser humano tem exercido em relação
ao próprio semelhante, que, nos casos mais dramáticos e também nos mais
trágicos, chegam ao cúmulo de fazer com que o semelhante seja visto como dessemelhante,
como estranho à sua própria espécie. Trata-se de um problema gravíssimo. Houve
épocas, contudo, em que se acreditou que a força da razão mudaria drasticamente
essa perversa tradição. No plano político, ou seja, no plano dos poderes e de
suas correlações, à vontade absoluta do monarca (absolutismo), que se tornou
emblemática por meio da expressão l’état c’est moi, foi contraposta uma nova
correlação de poderes na qual se propugnava, programaticamente, uma sociedade
livre, fraterna e igualitária. No plano do espírito, a liberação das forças
criativas da razão, interpretada por Kant como o Sapere Aude, se constituía na
própria e genuína autonomia intelectual das pessoas. Evidentemente, a autonomia
intelectual e também a autonomia política não requerem, nem podem requerer, a
ausência de qualquer influência. Sem a tradição e, em certo sentido, sem a
influência de várias tradições, nada somos e nada seremos. Portanto, a autonomia
não se constitui na recusa em ser tocado pela tradição, mesmo porque trata-se
de uma coisa impossível. A autonomia passa, sim, pela faculdade de adotar a
tradição no que ela tiver de justo ou de recusá-la, e principalmente de modificá-la
no que ela tiver de injusto. Mahatma Gandhi parece ter captado esse espírito ao
afiançar:
“Eu não quero que minha casa seja
fechada com paredes por todos os lados, e que minhas janelas fiquem trancadas.
Eu quero que as culturas de todos os lugares soprem sobre minha casa da forma
mais livre possível. Mas eu também me recuso a ser carregado por qualquer uma
delas” (Gandhi apud Perez de Cuéllar, 1997: 98).
Se o otimismo iluminista do final do
século XVIII gerou tanto a esperança depositada no poder da ciência durante o
século XIX, quanto a esperança otimista de trans-formação do ser humano por
ocasião da revolução socialista russa na segunda década do século XX, agora, já
na entrada do século XXI, essa esperança parece diluir-se. Apesar de tudo, é
necessário manter acesa a chama da utopia, pois a função desta não é a sua
plena realização — se assim fosse, não seria utopia —, mas sim prover condições
de espírito para trabalharmos incessantemente, com ânimo sempre novo, por um
mundo menos pior. Voltemos ao quadro de gravidade. As duas grandes Guerras
Mundiais ocorridas no século XX, um sem-número de crimes hediondos, como
massacres, torturas, chacinas, campos de concentração, racismo, guerras
étnicas, guerras high tech, guerras neocolonialistas e imperialistas, entre
outras mazelas, transformaram o século que ora finda em, talvez, o mais
sangrento de todos.
Acrescente-se a isso a tendência a uma
globalização perversa, caracterizada por uma interdependência das economias
nacionais, por uma forte e crescente hegemonia do capital financeiro, por um
avanço tecnológico altamente informatizado e robotizado que dispensa grandes
contingentes de mão-de-obra. Disso resulta uma acentuada tendência ao
desemprego; uma crescente concentração de renda em praticamente todo o mundo; a
marginalização de um continente quase inteiro (como é o caso da África); a escravidão
dos povos subdesenvolvidos pelos serviços da dívida externa; o enfraquecimento dos
Estados nacionais; o aumento da pobreza e da miséria; o possível aumento das desigualdades
regionais; a debilitação dos vínculos federativos por causa da necessidade imposta
pelo modelo econômico perverso, adotado no sentido de estimular exportações em
lugar de manter a solidariedade federativa por meio do mercado interno; o desprezo
pela educação e pela saúde; o desprezo pelos interesses dos pobres, etc.
Pode-se acrescentar, ainda, o consumo
intensivo dos recursos naturais solicitados por um modelo econômico dominante
dos países ricos e a enorme degradação causada aos meios de sustentação da vida
(qualidade do ar, das águas, das terras), o que acarreta enorme degradação ambiental.
Se compararmos esse espantoso quadro de horror com aquele descrito pelos
relatos de Frei Bartolomeu de las Casas (Bartolomeu de las Casas: 1996) e do
próprio Cortez (Cortez, 1997), por ocasião da conquista da América espanhola na
primeira metade do século XVI, podemos ver que, embora as formas de praticar a
opressão sejam diferentes, o espírito exterminador de povos e do futuro das
crianças continua sendo o mesmo. Quanto à ciência e à tecnologia, podemos dizer
que, se elas realmente contribuíram para aliviar a canseira humana para aquele contingente
de incluídos socialmente, que utiliza aviões e carros particulares, elas não
foram capazes de contribuir decisivamente para a erradicação da fome e da
exclusão social no mundo. Muito pelo contrário, a alta tecnologia de hoje
constitui um dos fatores de aumento do desemprego e da concentração de renda,
acarretando, por conseguinte, um aumento da exclusão social. Evidentemente,
isso não implica que a alta tecnologia não deva ser usada nem que ela não possa
desempenhar um papel importante em um programa de erradicação da pobreza, uma
vez alteradas radicalmente as prioridades sociais e o modelo econômico adotado.
Este, certamente, é o caso do programa de erradicação da pobreza liderado por
Cristovam Buarque (Buarque: 1999), o qual é baseado na bolsa escola. Esse programa
inverte a lógica economicista do modelo econômico dominante em curso. Em lugar
de perguntar qual é o custo da erradicação da pobreza, dever-se-á perguntar
pelo custo da manutenção dos privilégios. Trata-se de um programa viável, que
requer uma coalizão ética, necessariamente suprapartidária, e que implique
pilares para assegurar a sua continuidade e sustentação, pois provavelmente demanda
mais de uma década ininterrupta de esforços.
É um projeto que, caso seja implantado,
e esperamos que o seja, custará na ordem de 2% de um PIB como o brasileiro,
hoje em torno de 900 bilhões de dólares, o que é perfeitamente compatível com
as dimensões da economia brasileira, principalmente tendo em vista os seus relevantes
efeitos sociais.
Mas vejamos agora como o establishment
científico do final do século XX responde ao programa iluminista de liberação
de suas potencialidades criativas e ao exercício de sua autonomia intelectual.
A propósito, citaremos um texto de um livro, publicado em 1956, sobre a
situação dos Estados Unidos. Embora seja o relato de um livro publicado há 44
anos, e os números atuais sejam diferentes, a atualidade de seu teor
qualitativo continua, aparentemente, a mesma.
Seja, pois, o seguinte texto: “Dos 4
bilhões de dólares que no momento se gastam com pesquisas pelo governo,
indústrias e universidades, somente 150 milhões — menos de 4% — se destinam ao
trabalho cria-dor. A maioria absoluta das pessoas envolvidas na pesquisa, além
disso, deve trabalhar em equipes nas quais não possuem autonomia alguma, e
somente uma fração insignificante está em condições de fazer trabalho
independente. Das 600.000 pessoas engajadas em trabalho científico, calcula-se
que não mais que 5.000 tenham a liberdade de escolher os seus próprios
problemas” (White Jr. apud Alves, 1987: 196).
Se já sabemos que a ciência, por si só,
não é capaz de contribuir decisivamente para o programa de felicidade dos povos,
deveremos, a julgar por este quadro deprimente descrito por White Jr., ser
forçados a concluir que a instituição da ciência não propicia sequer a
autonomia intelectual para mais de 99% do establishment. Em outras palavras,
somente um contingente que representa menos de 1% pode escolher os seus
próprios temas, o que leva a crer que a instituição ciência está repleta de
cientistas normais do perfil descrito na seção 4. Mas não convém perder o
equilíbrio e emitir pareceres extremistas. A ciência alcança, apesar dos pesares,
conquistas cognitivas de extraordinário valor. A situação da segunda metade do
século XX parece indicar, no entanto, que, em larga medida, os procedimentos e
atitudes da grande maioria de cientistas se distancia sobremaneira daquilo que
se considera como a desejável e genuína atitude do educador. Em artigo recente
(Bastos Filho: 2000b), argumentamos que uma luta conseqüente por um mundo sustentável
e justo deve afastar-se, igualmente, de duas atitudes extremistas
caracterizadas, por um lado, pela reação neoromântica que representa uma
hostilidade radical à ciência e, por outro, na apologia triunfalista e cega da
ciência.
No primeiro caso, e na sua forma mais
radical, essa hostilidade vai até o ponto de negar, inclusive, o valor do
pensa-mento científico. No segundo caso, essa apologia pode favorecer o obscurecimento
da crítica levando à reprodução de valores que podem guardar uma semelhança com
algo muito próximo da lógica subjacente ao modelo de desenvolvimento dominante
caracterizado pela American way oflife, claramente insustentável,
principalmente se concebermos um caso hipotético em que tal modelo fosse
generalizado para todo o mundo. E não esqueçamos que esse modelo é mantido
devido à sustentação que lhe dá um aparato militar gigantesco, prática agressiva
aos meios de sustentação da vida em vários níveis, desde a enorme utilização de
indústrias altamente consumidoras de energia até o seu poderio destruidor no
sentido estrito do termo. Tudo isso re-mete, mais uma vez, à questão da
autonomia.
Vejamos um exemplo significativo para os
nossos propósitos. Celso Furtado (Furtado: 2000) nos conta que, em meados do
século XX, o paradigma econômico dominante no Brasil era cultivado por pessoas
em torno da liderança de Eugênio Gudim, o qual propugnava o pensamento econômico
inglês que seguia a ortodoxia liberal. Em 1947 foi fundada a Revista Brasileira
de Economia, da Fundação Getúlio Vargas, no Rio de Janeiro, sob a direção de
Eugênio Gudim e que basicamente se mantinha graças a traduções anglo-americanas.
O pensamento rebelde, autônomo e herético (estamos falando de heresia de boa
qualidade) encontrava sérias dificuldades para se afirmar, pois a validação que
asseguraria o seu reconhecimento dependia de critérios que não o favoreciam,
tais como a aceitação dos artigos correspondentes em revistas “classe A”. Muito
provavelmente, os referes dessas revistas não estavam minimamente propensos a
dar aval e credibilidade a teorias econômicas rivais em relação àquelas afeitas
ao paradigma dominante.
Em 1950, Celso Furtado e colaboradores
fundam a publicação Econômica Brasileira. Este evento, e talvez ainda com maior
razão a CEPAL, constituíram marcos iniciais de formação de um pensamento
econômico autônomo no Brasil e nos outros países da América Latina. Mas demos a
palavra ao próprio Furtado: “Cedo percebi que se me atrevesse a usar a
imaginação, conflitaria com o establishment do saber econômico da época. [...]
Que tenhamos nos revoltado e começado a usar a imaginação para pensar por conta
própria é algo que não é fácil de explicar. Mas a verdade é que isso ocorreu no
âmbito da América Latina: passamos a identificar os nossos problemas e a
elaborar um tratamento teórico dos mesmos. Havia uma realidade histórica
latino-americana, e mais particularmente brasileira a captar. A confiança em
nós mesmos para dar esse salto tornou-se possível graças à emergência da CEPAL
no imediato pós-guerra. Mas não basta armar-se de instrumentos eficazes. Para
atuar de forma consistente no plano político, portanto, assumir a
responsabilidade de interferir num processo histórico, impõe-se ter compromissos
éticos” (Furtado, 2000: 10).
E, mais adiante: “Nenhuma sociedade
consegue livrar-se completamente da ação de heréticos, e nada tem mais importância
na história da humanidade do que a heresia” (Furtado, 2000: 12). Estes
depoimentos primorosos dizem respeito a uma dupla procura de autonomia. A
autonomia legítima do intelectual que pensa com a própria cabeça, no dizer que
Furtado atribui a Prebisch, (Furtado, 2000: 15) e a autonomia como um
compromisso com o Brasil e com a América Latina. Ambos rigorosamente éticos. Essa,
sem dúvida, não era uma tarefa de pouca monta. Havia o confronto com interesses
poderosos, que defendiam idéias como a da economia “reflexa”, da “vocação”
essencialmente e exclusivamente agrícola, da manutenção de nossa dependência do
mercado externo pela exportação de produtos primários, às quais se contrapunham
idéias diferentes, como a da defesa da industrialização, do desenvolvimento do
mercado interno, de uma explicação causal diversa para o fenômeno do
subdesenvolvimento, etc.
Contextualizando os nossos argumentos,
podemos dizer, em suma, que as discriminações de gênero, raça, opção sexual,
condição periférica, condição regional que alguém possa vir a sofrer, seguem
todas uma lógica dominante perversa que, no fundo, é a mesma que afeta o
trabalho científico e o trabalho intelectual de maneira geral. A rebeldia
contra os ditames do FMI, e a conseqüente adoção de um modelo autônomo,
obedecem aos mesmos princípios unitários das rebeldias à la Gandhi, à la
Furtado, à la Buarque, à la Einstein, à la Freire e à moda de todos aqueles que
querem ser dono de seu próprio destino. Consubstanciaríamos esta tese com mais
dois argumentos: o manifesto-proposta de Buarque re-quer uma mudança ética que
aceitasse a regra da violação da isonomia nas escolas em função da realidade do
mercado de trabalho (Buarque, 1999: 73), uma valorização e priorização das
licenciaturas (Buarque, 1999: 82)e uma mudança ética na Universidade brasileira
que implicasse uma reorientação de seu esforço (Buarque, 1999: 81). Isso
significa que o combate à pobreza requer uma valorização da educação que vai na
direção contrária ao atual recrutamento acrítico de quadros para alimentar a
ciência normal, consubstanciada na atual primazia do bacharelado sobre a
licenciatura. Isso, em outras palavras, significa reorientar, de maneira
drasticamente in-versa, os mecanismos de prestígio do trabalho acadêmico, o que,
por sua vez, significa enorme desafio. A Educação autêntica e uma ciência
crítica e imaginativa constituem o bom caminho tanto para a eliminação da
pobreza quanto para a conquista da autonomia. Os desafios são enormes, e não podemos
dispensar as utopias. Faz-se mister uma grande reforma tanto da Universidade
quanto do pensamento, no sentido apontado por Morin (Morin: 1999).
Observações finais e conclusões Do que
discutimos aqui, transparece como notório o fato de alguém que tenha sofrido
influências que constituem tendências opostas vive, ou pode viver, um conflito.
Este conflito pode ser resolvido de três maneiras: por uma opção traumática e
corajosa, por acomodação, subserviente ou não, ou por uma espécie de
convivência com o dilema correspondente.
O conflito se manifesta quando as
pessoas são solicitadas a responder a situações que tanto envolvam críticas
quanto fortes convicções dogmáticas. Argumentamos que a questão passa,
necessariamente, pelo exercício da autonomia.
Não obstante a genialidade existir, o
que pode ser consubstanciado por formidáveis, admiráveis e extraordinários
feitos que enaltecem o espírito humano, a apologia triunfalista e cega da
genialidade, presente no ensino anti-histórico e artificialmente adulterado por
linearizações grosseiras, constitui manobra política que tem muito a ver com a
força e a eficiência da ciência normal.
Caracterizando o sistema dominante, há
ingredientes externos e internos e razões que podem ser explícitas, implícitas
e até mesmo subliminares. Se nos for permitido dar a palavra a um sujeito
indeterminado que represente o sis-tema dominante, poderíamos ouvir algo assim:
“Cientistas extraordinários como Galileu, Newton, Maxwell, Einstein,
Pasteur,
Darwin e Euclides são raríssimos, e somente gente desse nível pode realizar contribuições
de grande imaginação e criatividade seminais e fundamentais a ponto de caracterizar
trabalho extraordinário. Você é qualquer um, logo, ‘ponha-se no seu lugar’ e procure
inserir-se na ciência normal, simplesmente sendo um operário do saber.
Contente-se em ser apenas mais um”.
Mas, como é fácil de ver, um parecer
como o acima emitido pelo sujeito indeterminado que representa o establishment
dominante, que provê a formação de quadros para o ensino e para a pesquisa, não
seria o mesmo que emitiriam, por exemplo, Einstein, Pascal, Kant, Paulo Freire,
entre muitos outros. Einstein consideraria deprimente ser mais sucetível a
sugestões modistas do que os cavalos; Paulo Freire consideraria contrária à
ética a castração do outro, subjacente à própria prática rasteira de ciência
normal; Pascal consideraria indigno constranger o caniço pensante a renunciar,
justamente, ao próprio apanágio de sua dignidade, que é o seu pensamento; Kant,
não dispensaria o uso autônomo do pensamento nem mesmo no caso extremo em que
Deus aparecesse em pessoa e se revelasse.
Mas o sujeito indeterminado poderia,
ainda, contra-atacar e dizer: “Há uma enorme distância entre a prática e a prédica
e Einstein é Einstein. Ele pode fazer o trabalho extraordinário, mas de nada
adiantariam os seus conselhos para quem não fosse capaz de realizar o trabalho
extraordinário”. Neste exato momento, a manobra política do establishment
dominante se manifesta com toda a sua opressão e perfídia. Mas, felizmente, há
um erro fundamental nas conclusões do sujeito indeterminado. Esse erro tem
conseqüências perversas. Felizmente, pode ser apontado com toda precisão.
Vejamos como. Efetivamente, ser autônomo e crítico não significa fazer o mesmo
que Einstein, ou fazer algo do mesmo nível de Einstein e de outros cientistas
extraordinários. Autonomia requer, necessariamente, a autonomia de cada um, o
que significa a liberação das potencialidades críticas, imaginativas e criativas
de cada pessoa individualmente e/ou de grupos de pessoas em sinergia umas com
as outras. O que se reivindica é a autonomia com respeito às potencialidades. E
se o universo de possibilidades se encontra obstruído, que sejam envidados
esforços para a sua desobstrução.
Se não admitirmos isso, estaremos
assinando embaixo o atestado de que, com exceção de figuras extraordinárias, ninguém
mais poderia ser crítico, imaginativo e criativo; não seria possível emitir
juízos de valor sobre questões complexas nem ter aspirações legítimas de
cidadania. Pensar e ser feliz é mais promissor do que simplesmente ser
eficiente, principalmente se a lógica da eficiência é perversa.
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